Atualizar nome social gera transtornos e constrangimentos a pessoas trans; veja o que diz a lei

Órgãos públicos têm dever de fornecer informações sobre a retificação do nome em documentos e realizar o procedimento de troca

Legenda: Retificação do nome social é direito garantido na legislação estadual e federal
Foto: Shutterstock

A falta clareza nas informações divulgadas pelos órgãos públicos é um empecilho para que o microempreendedor Charlie Renatti Silva, 27, conclua o processo de retificação do nome social nos documentos. Charlie é trans não-binário, ou seja, não se identifica exclusivamente com o gênero masculino ou feminino. Já tendo feito a atualização do registro civil, direito garantido pela legislação, ele procurou o Detran-CE para mudar o nome que consta na Carteira Nacional de Habilitação e nos Certificados de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) de suas duas motos. No entanto, não encontrou orientação para realizar o procedimento. 

“A sensação que dá é como se não tivesse a mínima importância esse documento ser atualizado”, diz Charlie. Mesmo tendo conseguido solicitar a troca do nome na CNH pelo Vapt Vupt da cidade onde mora, em Juazeiro do Norte, não há prazos informados para receber o novo documento. Já sobre o CRLV, nenhuma informação foi encontrada. “A gente teve informação dos outros tipos de documento, como proceder. Mas esse eu não sei, não tenho nem direção de onde começar pra realizar essa mudança”.

Charlie
Legenda: Charlie iniciou o processo de mudança de nome no registro em outubro, mas encontrou dificuldades no caminho
Foto: Arquivo Pessoal

Enquanto não consegue retificar os certificados de registro, Charlie precisa carregar consigo, aonde quer que vá, todos os documentos e cópias utilizados pelo cartório para fazer a mudança do nome no registro civil. Apesar de já estar com o nome social escrito no RG e CPF, ele relata preocupação caso precise explicar a presença de outro nome nos documentos das motocicletas.

“Quero resolver logo essa situação. Até porque também é bem constrangedor ainda andar com um documento com um nome que eu não me identifico”, afirma.

Procedimento para atualizar documentos

Procurado pelo Seu Direito, o Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE) explicou como deve ser feito o procedimento, que não pode ser realizado de forma virtual. Para atualizar o nome social nos documentos do veículo, a pessoa deve se dirigir a qualquer posto de atendimento do Detran no Ceará portando documento oficial de identificação com novo nome social, comprovante de situação do CPF, comprovante de residência, Certificado de Registro do Veículo (CRV) em branco e levar o automotor para vistoria, que deve ser agendada.

O procedimento custa ao todo R$ 152,65. Segundo o órgão, as taxas são necessárias para a confecção de um novo CRV, a vistoria veicular e a alteração de dados do proprietário. Depois de feita esta atualização, o novo CRV e o CRLV devem ser entregues, em média, em até cinco dias.

Já para a retificação do nome na CNH, é necessário solicitar segunda via com alteração de dados. No dia do atendimento agendado previamente, o condutor deve levar documento de identidade atualizado, comprovante de residência e a CNH. É obrigatório registrar nova foto. Para esse procedimento, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) deve conceder uma autorização especial. O documento pode ficar pronto em cerca de 10 dias úteis.

Retificar nome social é dever de órgãos públicos

Em 2019, a lei estadual de número 16.946 foi sancionada no Ceará. A partir disso, ficou assegurado pela legislação o direito de pessoas transexuais e travestis serem identificadas pelo nome social “nos atos e procedimentos promovidos no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta e no âmbito dos serviços privados de ensino, saúde, previdência social e de relação de consumo”. O decreto do Governo Federal nº 8.727, de 2016, também determina o direito.

De acordo com o advogado Júlio Figueiredo, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB-CE, os órgãos governamentais são obrigados a dar informações sobre como proceder com a retificação do nome social para todos os tipos de documentação. Além disso, nenhum órgão pode se negar a atualizar o nome escolhido pelo cidadão.

“O que nós temos que trabalhar hoje em dia é a informação da população. Porque a população LGBT tem conquistado seus direitos, mas não tem sido dada a publicidade adequada a eles” opina Júlio.

Por isso, ele defende que sejam feitas campanhas de conscientização sobre os direitos de pessoas trans para que os órgãos disponibilizem as informações necessárias e, assim, os cidadãos tenham condições de exercer a retificação do nome.

Para a advogada popular e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Diversidade Sexual e Gênero (NEDIG) da Universidade de Brasília, Luanna Marley, “um direito fundamental como é a livre expressão gênero e o reconhecimento das identidades de gênero traz consigo a exigência de que a administração pública (seja ela direta ou indireta) haja com eficiência e esta eficiência está ligada a disponibilização de informações precisas e didáticas”.

Luanna chama atenção para o quanto é comum informações sobre como fazer a retificação do nome serem insuficientes ou não existentes, mesmo com a luta de décadas de pessoas trans e travestis pelo direito ao nome social. Além disso, essa população ainda sofre preconceitos ao procurar os serviços públicos. “Diversas pessoas ainda estão passando por constrangimentos e discriminações, inclusive na hora de solicitar este direito”, diz.

Assessoria jurídica gratuita

Para auxiliar na reunião de documentos, pagamentos de taxas e trâmites burocráticos, as Coordenadorias de Políticas Públicas para LGBT e de Cidadania, ligadas a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), desenvolvem um projeto de assessoria jurídica gratuita, chamado Retifica Trans.

Por meio dele, também é feito o agendamento do atendimento nas unidades de Vapt Vupt para a retirada de um novo RG. A SPS informa que a mudança do nome em documentos de outros órgãos também pode ser mediada pelo projeto. 

As pessoas trans e travestis que desejam receber a ajuda jurídica podem procurar a coordenadoria por meio do e-mail do programa. No interior do Estado, é possível conseguir orientações sobre a retificação nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas).

Como denunciar o descumprimento da lei

De acordo com a SPS, em casos de desrespeito da lei do nome social por algum órgão ou servidor público, é possível fazer denúncias ao Centro de Referência em Direitos Humanos pelo telefone (85) 3101-2998. O centro fica na rua Valdetário Mota, 970, no bairro Papicu, em Fortaleza. Outra possibilidade é denunciar para a ouvidoria do próprio órgão que descumpriu a legislação.

Luanna Marley afirma que ainda é comum cartórios se negarem a fazer o procedimento, mesmo com o cidadão levando toda a documentação exigida pelo provimento de nº 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regulamenta a alteração de nome e gênero no registro civil. 

“No caso dos cartórios, vale ressaltar, quem normatiza e fiscaliza estes é o Poder Judiciário. O que isso quer dizer? Que a denúncia pode ser feita junto à Corregedoria do Tribunal de Justiça, que é o órgão responsável pela fiscalização dos cartórios. A Associação de Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), entidade que representa todos os serviços cartorários do País, também tem uma ouvidoria para saber como está o atendimento dos cartórios em todo o Brasil”, explica.

As denúncias também podem ser comunicadas ao Ministério Público ou aos centros operacionais e núcleos especializados em direitos humanos da Defensoria Pública, dependendo da gravidade do preconceito sofrido.