Sem um candidato favorito inconteste e sem prazo oficial para anúncio do vencedor do novo ocupante da Casa Branca, os EUA vão hoje às urnas, em plena pandemia do novo coronavírus, sob um clima de intensa polarização ideológica e política. O presidente republicano Donald Trump, 74, em segundo lugar nas últimas pesquisas, atrás do democrata Joe Biden, 77, ameaça contestar uma possível derrota, alegando fraudes no processo eleitoral, um cenário extremo que pode abalar a imagem da democracia americana e contaminar as previsões pessimistas de recuperação rápida da economia mundial devido às incertezas sobre quem tomará posse no dia 20 de janeiro.
Nos últimos dias, a mídia americana noticiou que a estratégia de Trump é, na noite de hoje, declarar-se vencedor, mesmo sem o fim da apuração dos votos, que pode demorar dias devido ao grande número de votos enviados pelos correios. Essa pressa seria um pretexto para questionar uma possível virada dos números a favor de Biden na contagem dos votos em estados-chaves e decisivos, como a Flórida e a Pensilvânia, onde não está claro qual será a escolha majoritária dos eleitores.
Uma possível contestação de Trump sobre o resultado da eleição na Suprema Corte tem potencial de causar turbulências no mercado financeiro e desafiar o mundo da diplomacia a encontrar uma solução para um impasse na segunda maior democracia do mundo, atrás apenas da Índia.
Para especialistas, ao incitar uma guerra jurídica sobre o resultado da eleição, o presidente mais polêmico da história dos EUA colocou a democracia do país sob seu maior teste de estresse desde a Guerra Civil, entre 1861 e 1865, quando estados do Sul lutaram contra os do Norte pela manutenção da escravidão. Há temores de que, diante de uma eventual radicalização, nem a eleição consiga restaurar a força da democracia no país.
Pandemia
A avaliação dominante é que, se confirmada uma derrota de Trump, como projetam as pesquisas, a culpa seria de sua postura negacionista diante da pandemia da Covid-19, uma aposta política que foi reproduzida por outros líderes políticos de governos direitistas pelo mundo.
Até ontem, os EUA acumulavam mais de 9,5 milhões de infectados pelo novo coronavírus, sendo que mais de 236 mil morreram. Trata-se do país com o maior número de casos e de óbitos. No início da pandemia, no fim de março, a Casa Branca chegou a projetar 100 mil mortes no país.
O confinamento das populações provocou, em seguida, uma interrupção das atividades produtivas em todo o Planeta, o que provocou demissões em massa e quebra de empresas. Com isso, o principal trunfo eleitoral de Trump (o registro da menor taxa de desemprego nos EUA em 50 anos, exaltada em 2019) desapareceu no primeiro semestre deste ano.
Mesmo contraindo Covid-19 com a primeira-dama, Melania Trump, e seu entorno de auxiliares na Casa Branca, o presidente manteve atitudes de minimizar a gravidade da pandemia, de prometer a disponibilidade de uma vacina antes do pleito de amanhã, o que acabou não se confirmando, além de recusar o uso de máscara e manter a agenda de aglomerações em comícios, contrariando as recomendações das principais autoridades de saúde pública.
Instabilidade
A disposição de Trump de contestar o processo eleitoral pode repetir um impasse visto em 2000, quando a Suprema Corte decidiu encerrar a recontagem dos votos e declarar a vitória do republicano George W. Bush, derrotando o democrata Al Gore.
“Atualmente, a polarização social é muito maior, e uma decisão como aquela de 20 anos atrás poderia causar instabilidade social”, analisa o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e autor do livro “Mundo Pós-Ocidental”, Oliver Stuenkel.
Antes do pleito de hoje, a Suprema Corte já teve de julgar casos envolvendo a votação em vários estados. “Na Carolina do Sul e no Wisconsin, a decisão acabou dificultando o voto - o que é bom para Trump. Já na Pensilvânia e na Carolina do Norte, a balança virou em favor dos democratas, e o Tribunal autorizou uma prorrogação de três e nove dias, respectivamente, para cédulas enviadas pelo correio”, observa Stuenkel.
A maior preocupação dos democratas, segundo o professor da FGV, é que, em uma das sentenças, o juiz Brett Kavanaugh fez referência à decisão controversa de 2000.
“Três dos nove juízes que hoje integram a Suprema Corte, inclusive Kavanaugh e Amy Coney Barrett, trabalharam na equipe de George W. Bush na Flórida em 2000”, recorda Stuenkel.
O risco de impasse na apuração dos votos não preocupa só a definição de quem será o próximo presidente e seu vice. O pleito de hoje também vai escolher 35 senadores, 435 deputados federais, 11 governadores e 5.000 deputados estaduais. O sistema de votação é indireto, através do colégio eleitoral, com delegados que representam a população dos 50 estados. Há no total 538 votos no colégio eleitoral, e um candidato vence se tiver pelo menos 270 votos.
Como Bolsonaro vai se posicionar
A diplomacia brasileira recomendou ao presidente Jair Bolsonaro sobre como agir em cenários previstos para o resultado da eleição americana. Um deles é visto no Palácio do Planalto como de "considerável probabilidade": a contestação do resultado por parte do aliado, Donald Trump, em caso de derrota por margem apertada. Neste caso Bolsonaro seria aconselhado a silenciar.
Dois colaboradores da equipe brasileira sugerem comedimento. Ouvidos reservadamente um deles disse que será necessário "esperar a poeira baixar", em caso de judicialização. O outro afirma que a hipótese, já aventada por Trump, "exigirá cautela do nosso lado, para não se precipitar na comunicação". Se a vitória de Biden for folgada, o Governo brasileiro deve reconhecer a vitória.