Estupro, assédio e ameaça: o terror vivido por dezenas de mulheres diante de um médico em Hidrolândia

Em entrevistas exclusivas, as vítimas contam detalhes dos episódios de abuso. Elas falam que já tinha denunciado o crime para a Secretaria de Saúde do Município, que não afastou o profissional antes que o caso chegasse à Polícia

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
denuncia hidrolandia
Legenda: Seis mulheres denunciaram os crimes sexuais à Polícia Civil
Foto: Shutterstock

A 300 quilômetros de Fortaleza, na cidade de Hidrolândia, dezenas de mulheres tiveram uma experiência de horror que, cada vez mais frequentemente, estampa os noticiários no Brasil. Quem reside nesse município localizado no Interior do Ceará e já esteve dentro do consultório do médico Ricardo Teles Martins, 45, costuma não sair do local com boas memórias.

A reportagem do Diário do Nordeste apurou que, pelo menos, 40 mulheres se consideram vítimas de crimes sexuais supostamente cometidos durante atendimento. Seis, até então, denunciaram formalmente à Polícia Civil do Ceará. Foram meses de investigação até que na última semana o médico fosse preso e indiciado por estupro.

Do assédio ao estupro. Em entrevistas exclusivas, as vítimas relatam detalhes de como seus corpos foram violados. São meninas, mulheres, que carregam o drama e o medo de se verem novamente nesta situação, temendo que familiares e amigos desacreditem nas versões delas ou partam do pensamento que: "se aconteceu, é porque deu liberdade para isso". Nas redes sociais, familiares do médico desmentem as denúncias.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec) não informou se o médico em questão está ou não impedido de exercer a Medicina, após ser indiciado.

BUSCA POR AJUDA

Pacientes contam que no ano passado já tinham noticiado a conduta inadequada do médico para a Secretaria da Saúde do Município, mas o homem não foi afastado e continuou a fazer vítimas. O pontapé para a investigação foi a denúncia de Carolina (nome fictício). Em maio, a mulher buscou atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS) Cosma Maurício da Silva com um quadro de mastite em decorrência da amamentação, quando foi violentada pelo profissional.

Ela relatou nas redes sociais que o procedimento começou normalmente, mas depois o profissional de saúde começou a "chegar mais próximo" para tentar beijá-la, fazendo "perguntas eróticas", como: "você já teve relação sexual depois que teve sua filha?', 'você me deixou excitado, você não tá?'. Eu fiquei sem reação".

A repercussão da denúncia fez com que outras mulheres se encorajassem a falar. Anna (nome fictício), 28, conta que foi atendida pelo médico suspeito no início de 2021. A finalidade da consulta era passar por um ultrassom, para acompanhar a quarta gestação.

"Quando eu cheguei lá ele ficou tentando pegar em mim e fiquei me saindo. Deitei na cama para o exame. Ele subiu minha blusa e meu short, desceu muito, foi diferente das outras ultrassons que eu já tinha feito. Estranhei, olhei para ele e ele riu. Fiquei nervosa e comecei a ter falta de ar. Ele disse que eu estava muito nervosa, perguntou se eu tinha outros filhos. Falei que tinha e ele: ah, você gosta de trabalhar, ne, gosta de fazer filho, gosta muito de sexo"

A mulher ficou sem reação. Tentou sair da sala, mas foi impedida com um abraço do profissional: "Não quis comentar nada na época, com ninguém. Uns meses depois, a sobrinha do meu esposo passou por consulta com esse mesmo médico. A mãe dela veio desesperada dizendo que ele passou o dedo nas partes íntimas dela".

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No último mês de junho, Anna decidiu denunciar. Foi até a Delegacia em Santa Quitéria, unidade responsável por apurar este caso, prestou depoimento e fortaleceu a suspeita das autoridades acerca das ações de Ricardo Teles Martins.

"Acho que nunca vou ter uma sensação de alívio, nunca vou esquecer o que aconteceu, mas só o fato dele estar preso, me faz acreditar na Justiça e ter esperança que outras mulheres não passem mais por isso com ele", diz.

"COM UMA MÃO SEGURAVA O APARELHO E COM A OUTRA PEGAVA NA MINHA VAGINA"

Os relatos de demais vítimas se complementam. As histórias trazem traços de repetição de um mesmo modus operandi do abusador. São sempre mulheres, jovens e adultas, que estiveram dentro do consultório médico para passarem por exames e consultas de rotina.

Bia, Cristina, Rosana e Letícia. Todas com nomes fictícios, mas donas de histórias que precisam ser contadas. Bia, 37, foi vítima há quase dois anos. Com o passar do tempo, permaneceram os pesadelos, insônia e episódios de pânico, ao saber de novos casos.

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"Eu tinha que fazer um ultrassom transvaginal. Quando eu cheguei no hospital para fazer, fui a última para entrar. Quando eu vi que ele estava sozinho esperei para ver se alguma enfermeira ia entrar. Não entrou. Foi ele quem me ajeitou. Começou o exame. Ele ficou colocando a mão em cima da minha vagina. Com uma mão segurava o aparelho e com a outra pegava na minha vagina. Então eu fiquei sem ação, fiquei nervosa, vi que aquilo não era normal.

Eu segurei um pano para me cobrir. Saí de lá sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. Não falei para o meu esposo. Passei uma semana me sentindo mal, não conseguia comer direito, ficava tendo pesadelos. Decidi buscar ajuda. Fui orientada a procurar uma assistente social do Município.

Eu falei com o secretário de saúde, ele disse que ia falar com o médico. O médico negou tudo e ficou minha palavra contra a dele. Eu resolvi não fazer um escândalo, só queria que tomassem providências para que aquilo não acontecesse com outras mulheres.

Mas quando eu soube que isso acontecia com outras mulheres, entrei em desespero de novo. Eu passei por uma cirurgia e ainda não tive como ir à Polícia, mas eu quero denunciar sim. Foi um alívio em saber que ele foi preso, mas ao mesmo tempo eu fico preocupada dele ser inocentado. Eu fiquei sabendo de 47 mulheres vítimas em Hidrolândia. Tem muita mulher que nunca nem foi denunciar. Quando eu soube dos outros casos vi a necessidade de denunciar, de não me calar mais".


Cristina, 24, (nome fictício), foi outra a procurar assistência na Secretaria da Saúde depois do abuso. Em 2021, precisou da consulta porque estava com problemas nos rins. Uma enfermeira a vestiu e saiu da sala. Ricardo teria se aproximado dizendo que precisava ver os ovários.

"Começou a empurrar o aparelho dentro de mim. Ele queria fazer uma transvaginal, mas eu acho que não tinha nada a ver. Eu pedi que não fizesse e ele começou a me forçar: "Tem que fazer sim". Depois fez várias perguntas íntimas"

A Secretaria de Saúde de Hidrolândia foi procurada a fim de se posicionar sobre os casos já denunciados no ano passado, mas não emitiu resposta até a edição desta matéria. Após investigação da Polícia Civil, se sabe que o médico foi afastado das funções

No último mês de maio, a Prefeitura Municipal de Hidrolândia comunicou que "zela pelo bom atendimento por parte de todos os seus servidores aos usuários que utilizam do serviço público". 

"EU NÃO SABIA QUE ELE TINHA FEITO ISSO COM OUTRAS"

Rosana tinha 17 anos quando foi violentada na unidade de saúde, em Hidrolândia. Ela narra ter ido buscar atendimento médico, porque estava com manchas roxas no corpo, sem saber de onde vinham. No consultório, Ricardo Teles teria negado o atendimento afirmando que as manchas eram características de agressão: "deve ser o seu namorado que está te batendo".

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Depois, segundo ela, pediu que a menina baixasse o short: "Eu desabotoei e ele quis ver meus batimentos cardíacos. Estranhei, fechei o botão e saí da sala". Meses depois, precisou retornar para uma nova consulta.

"Na outra vez, eu estava com um nódulo no seio. Como eu já sabia como ele era, pedi para a minha prima ficar na sala comigo. Entrei em um ambiente para me trocar e começar o procedimento. Foi quando ouvi ele fazendo perguntas sobre mim para a minha prima, perguntas da minha vida pessoal, como se eu era solteira", diz Rosana.

Letícia, 28, também declara ter sido abusada pelo mesmo homem. Hoje, integra um grupo formado por vítimas, pensado como "rede de apoio". Se antes pensava que estava sozinho, agora entende que a culpa não foi sua e que existem pessoas que acreditam no que ela diz ter passado.

"Ele me abraçou e me beijou dentro do consultório. Eu tentava me soltar e ele me agarrava mais. Até que eu consegui chegar no trinco da porta e saí. Só tinha falado isso para a minha mãe. Fiquei com medo do que os outros iam falar, medo de que as pessoas não acreditassem em mim".

A Polícia Civil do Ceará afirma que, neste caso, "trabalhou a partor dos congruentes relatos das supostas vítimas, até a autoridade policial concluir pela semelhança no modus operandi o que levou ao indiciamento" do médico.

Por nota, a PCCE destaca a necessidade da denúncia: "Crimes sexuais acontecem muitas  vezes a portas fechadas, como no caso de consultórios médicos. A palavra da vítima é de extrema importância diante das caracteristicas desses crimes".

À DISPOSIÇÃO DA JUSTIÇA

A família do médico preso vem divulgando notas de repúdio nas redes sociais e nega os crimes. Os parentes acreditam que o suspeito será inocentado e "que tudo isso cairá por terra". O advogado de defesa do suspeito não foi localizado.

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Legenda: A família do suspeito acredita na inocência dele
Foto: Reprodução/Redes Sociais

A reportagem entrou em contato com o Ministério Público do Ceará (MPCE) a fim de saber se Ricardo Teles Martins foi denunciado. Por nota, o órgão afirmou que "ainda está tomando ciência dos fatos e somente após ter acesso a mais informações poderá se manifestar a respeito do assunto".

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