Procurar provas a favor da defesa de um suspeito de cometer um crime, para rebater ou complementar uma investigação policial convencional. Essa é a investigação defensiva, que tem se tornado cada vez mais comum nos processos criminais e que já foi utilizada no Ceará para absolver e soltar inocentes. Entretanto, o Ministério Público do Ceará (MPCE) faz ressalvas sobre o modelo brasileiro.
A investigação defensiva não é prevista no Código de Processo Penal (CPP) vigente no Brasil, datado de 1941 - tem 80 anos. Mas, para atender essa e outras demandas de atualizações, o Projeto de Lei nº 8045 tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, desde 2010. O Projeto, apresentado pelo então senador José Sarney (PMDB-AP), aguarda a criação de uma Comissão Temporária pela Mesa para ser apreciado.
O PL 8045/2010 prevê no Artigo 13, do Capítulo I (Disposições Gerais) do Título II (Da Investigação Criminal), que "é facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas".
Mesmo sem a modificação do CPP, advogados têm se amparado em um posicionamento do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para realizarem a investigação defensiva. O Provimento nº 188/2018 compreende como investigação defensiva "o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte".
Art. 2º A investigação defensiva pode ser desenvolvida na etapa da investigação preliminar, no decorrer da instrução processual em juízo, na fase recursal em qualquer grau, durante a execução penal e, ainda, como medida preparatória para a propositura da revisão criminal ou em seu decorrer."
O Conselho Federal delimita ainda que o advogado poderá, "na condução da investigação defensiva, promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato, em especial a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, determinar a elaboração de laudos e exames periciais, e realizar reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição".
Presos são inocentados no Ceará
A investigação defensiva já ajudou a presos serem soltos e inocentados no Ceará. O caso mais recente foi o de David de Souza Távora, preso em flagrante em junho deste ano por suspeita de cometer uma tentativa de latrocínio, no cruzamento da Via Expressa com a Avenida da Abolição, em Fortaleza. A vítima, um homem que trafegava em uma motocicleta, foi baleada na coluna e precisou passar por cirurgias, mas ficou com sequelas nos membros superiores e inferiores.
Além da ida 'in locu' e de conversar com pessoas que estavam na cena do crime, que tiveram medo de depor contra o policial militar, a gente conseguiu imagens que mostram a cena do crime e que o sujeito que atirou contra a vítima ficou no local até com a presença da Polícia, como se fosse um cidadão transeunte."
David Távora trabalhava limpando vidros de carros em um sinal, desde que saiu do presídio em 2020 e não conseguiu emprego formal. Na manhã do dia 3 de junho, ele foi surpreendido e detido por uma composição da Polícia Militar do Ceará (PMCE). David alegou que nem sabia que havia acontecido a tentativa de latrocínio há um quarteirão de distância e que chegou ao local pouco depois.
Contra David, no processo criminal, pesou apenas o testemunho de um policial militar - além das duas passagens pela Polícia por roubo (ambas com alvarás de soltura). Outras testemunhas e a própria vítima da tentativa de latrocínio não o identificaram como autor do crime. Mesmo assim, ele passou seis meses preso. O próprio Ministério Público do Ceará foi a favor da sua absolvição, e o pesadelo acabou com a decisão judicial pela sua inocência, proferida pela 5ª Vara Criminal, no último dia 13 de dezembro.
É notório que a realidade das provas colhidas no processo demonstra que o acusado merece a absolvição, por não ter sido reunido um universo sólido de provas contra sua pessoa, já que a falta de detalhes e esclarecimentos, inclusive em relação às pessoas que estavam no local onde o réu atingiu a vítima, terminou por gerar dúvidas que devem ser dirimidas em seu favor, para não sedimentar a injustiça."
O advogado Alexandre Sales e a família de Emanoel Fillipe Farias de Sousa, através de uma investigação defensiva, também demonstraram para a Justiça Estadual que o acusado não era ligado ao tráfico de drogas, no Município de Boa Viagem. Emanoel foi inocentado em dois processos neste ano, e policiais militares são suspeitos de forjarem os flagrantes contra ele.
Em um exemplo que ganhou notoriedade nacional, o borracheiro Antônio Cláudio Barbosa de Castro foi inocentado e solto, em julho de 2019, após cinco anos preso por uma acusação de estupro, ocorrido em Fortaleza. O trabalho de Revisão Criminal foi realizado pela Defensoria Pública Geral do Ceará e pelo Innocence Project Brasil - iniciativa que atua na defesa de condenados erroneamente pela Justiça brasileira.
A investigação defensiva apontou que o autor do estupro tinha cerca de 1,80 metro de altura (baseado em vídeo do caso), enquanto Antônio Cláudio tem 1,59 m; que o borracheiro não tinha uma motocicleta vermelha, como a utilizada pelo criminoso; e que a condenação a prisão foi baseada somente no reconhecimento feito pela vítima, uma menina de 11 anos, que sofreu um abalo psicológico.
Se a gente tiver instituído, no Brasil, a investigação defensiva, a gente vai estar avançando muito em direção a um processo penal mais democrático, mais garantista. Porque, hoje, em 99% das investigações criminais, a defesa fica completamente apartada, não consegue ser vista nem ser um agente esclarecedor daquele fato investigado."
O outro lado: a acusação faz ressalvas
O promotor de Justiça Marcus Amorim, titular da 97ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, do Ministério Público do Ceará, que já se debruçou sobre o tema da investigação defensiva, afirma que a ideia é boa, mas faz ressalvas.
Amorim contextualiza que existem duas formas de um investigado participar de uma apuração de um crime. Na primeira possibilidade, ele ajuda a investigação da Polícia ou do Ministério Público, o que é previsto por lei. E a segunda alternativa é a investigação defensiva.
Acontece que, no Brasil, a ideia é boa, só que se tira de um determinado contexto no exterior e se traz para cá em um contexto diferente, sem fazer os ajustes necessários."
Segundo Amorim, o país que tem a estrutura de Justiça mais semelhante com a brasileira e que já tem a investigação defensiva regulamentada por lei é a Itália. Lá, a Polícia e a defesa do suspeito entregam as investigações para o Ministério Público analisar o caso e decidir se denuncia ou não o suspeito. A investigação não é entregue diretamente ao juiz, como se pretende implantar no Brasil.
O representante do MPCE pontua que, no Brasil, ainda não tem lei para instituir a investigação defensiva; que o PL 8045/2010 tem apenas um artigo sobre isso; que o Provimento do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil não é lei; que um detetive particular não pode investigar um crime, segundo a lei que institui a profissão (Lei nº 13432/2017); e ainda que nem todos os suspeitos vão poder contratar uma banca com capacidade para realizar uma investigação.