Vidas transformadas pelo crochê

O talento e o esforço para passar adiante o legado do conhecimento fizeram toda a diferença para essas mulheres

Escrito por André Costa - Colaborador ,
Legenda: As crocheteiras melhoraram a renda e a autoestima da comunidade
Foto: Fotos: André Costa

Várzea Alegre. Da varanda de casa ou do prédio da Associação Comunitária do Sítio Mocotó, um grupo de 20 mulheres vê, praticamente todos os dias, o nascer e pôr do sol com linhas e agulhas nas mãos. A habilidade e agilidade nos dedos faz surgir peças singulares, que são comercializadas para todo o Brasil. No entanto, quem vê a beleza das peças de crochê não imagina a trajetória difícil dessas artesãs.

Maria Miguel de Oliveira, conhecida popularmente como Rosinha, é uma dessas mulheres. Nascida em 1959, numa família humilde no Sítio Mocotó, zona rural deste município, portadora de uma problema congênito de atrofia dos membros inferiores, venceu, por meio do crochê, um a um os desafios que a vida lhe impôs. Filha de agricultores analfabetos, Rosinha só aprendeu a ler e escrever aos 14 anos. Antes, porém, sua mãe lhe ensinou o ofício que mudaria para sempre a sua e a vida e de tantas outras famílias: o crochê.

"Aprendi a fazer com 9 anos e 8 meses", lembra. A partir de então, revelou-se um dom sem par naquela localidade. Junto à arte de fazer rendas em varandas, jogos americanos, tapetes e outras tantas peças, surgiu a vontade de mudar a vida da comunidade pelo crochê. Foi então que, em 30 de maio de 1989, ela e suas duas irmãs, Ceilda de Oliveira, também deficiente; e Cileide de Oliveira, já falecida, fundaram uma associação.

Inicialmente, eram 17 mulheres atendidas. O primeiro passo foi ensinar-lhes o crochê. Em seguida, veio a vontade de alfabetizá-las. "Ninguém sabia ler nem escrever. Já eu e minha irmã, sabíamos, o que era raro pra comunidade. Então a gente iniciou um trabalho de alfabetização com os moradores. Anos depois, vários homens e mulheres já tinham aprendido. Foi um passo importante para que nossa comunidade começasse a melhorar de vida, inclusive financeiramente", recorda.

Ceilda explica que, naquela época, a renda das famílias era majoritariamente vinda da agricultura e, em tempos de seca, o sustento ficava comprometido, devido à limitação. "Se não chovesse, a situação ficava complicada para comunidade. Foi também a época em que o algodão começou a declinar. Como ninguém sabia ler, isso dificultava a busca por outro emprego".

Resultados

Meses após a fundação, Rosinha e sua irmã conseguiram um empréstimo para compra de duas máquinas de costura e matéria-prima para fabricação de seis redes - o que viria a ser, no futuro, o carro-chefe da Associação. "Fomos ensinando as outras mulheres e logo todas estavam produzindo. Inicialmente fabricamos seis redes e vendemos em Fortaleza. Todo o dinheiro apurado foi empregado na compra de mais matéria-prima e assim fomos crescendo", diz.

Mais de duas décadas depois, já contando com mais de 35 famílias, entre agricultores e artesãs, os resultados surpreendem até mesmo as irmãs. "A mortalidade infantil na comunidade foi erradicada, quase todos estão alfabetizados, a renda das famílias melhorou e muitas mães agora trabalham em casa, podendo acompanhar o crescimento dos filhos", orgulha-se dona Rosinha.

A artesã Nádia Risocélia da Costa, 25, é uma das tantas que tiveram a vida "transformada depois do crochê", conforme ela mesma descreve. "Antes, eu trabalhava em casa de família. Passava o dia todo fora, entre uma casa e outra e, no fim do mês, minha renda era muito pequena. Mal dava para ajudar meu esposo". Depois de ter sido assistida pela Associação, conta que aprendeu a ler, a renda mais que triplicou e hoje ainda pode acompanhar o crescimento do filho.

Referência

Com quase 30 anos de fundação, a Associação que impulsionou melhorias à comunidade de Mocotó, teve seu trabalho reconhecido, em março de 2013, com exposição na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Além disso, recebeu, do governo do Estado, o Selo Ceart, em março deste ano.

O Selo é uma certificação que garante a autenticidade dos produtos artesanais, estimulando a melhoria dos processos produtivos, a elevação do padrão de qualidade e a busca pela excelência dos produtos.

O seu propósito é proteger os artesãos e suas obras, assim como criar referências para o mercado e para os consumidores nas decisões de compra, para que reconhecer as obras de arte popular pela sua importância na caracterização da identidade cultural cearense.

Recorde

Na última semana, essas mulheres receberam a carteira de artesã, do governo do Estado e foram homenageadas em um dos maiores encontros de crocheteiras já realizado no mundo. Foram mais de 850 artesãs, em sua maioria mulheres humildes que moram na zona rural e que mudaram sua trajetória de vida por meio do artesanato.

O secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social, Josbertini Clementino, participou do evento, realizado em Várzea Alegre, e destacou a importância do ofício para economia local.

"As nossas artesãs têm uma força extraordinária dentro de si. São mulheres batalhadoras, que além de cuidar da casa e dos filhos, conseguem produzir um artesanato original e reconhecido, inclusive em outros países. E muitas vezes elas são invisibilizadas. Portanto, em um Estado como o Ceará, que conta com mais de 43 mil artesãs registradas na Ceart, é nosso dever identificar esses grupos e incentivar essa que é mais do que uma arte, é uma fonte segura de renda. Vamos valorizar essas mulheres que estão levando o artesanato cearense para o mundo", destaca Josbertini.

Legado

A fabricação artesanal das redes de dormir e das varandas de crochê é o carro-chefe da Associação, que também produz varandas jogos americanos, sousplat e tapetes de crochê, assim como bandeja, guardanapos e porta-pães bordados com ponto cruz, entre outras peças.

Tudo que é comercializado é dividido de forma igual entre as artesãs. "Já vendemos até para fora do Brasil", recorda Ceilda. Entretanto, embora seja importante, o lado financeiro, segundo Rosinha, não é o principal.

"Me orgulho e me emociono quando relembro de como tudo isso começou. Muitas pessoas duvidaram do nosso potencial, até por sermos deficientes físicas, mas nós acreditamos e seguimos em frente. Hoje muitas famílias mudaram de vida, a comunidade evoluiu, a autoestima cresceu e o legado já está aí. É uma associação que acreditou, principalmente, na capacidade de cada uma das artesãs e hoje colhe frutos. Posso afirmar que o crochê, junto a força de vontade, mudou a vida de centenas de pessoas", conclui dona Rosinha.

ENQUETE

O que mudou para vocês?

"Um grande divisor de águas. Foi pela arte de crochetar que a comunidade cresceu. Dezenas de pessoas foram alfabetizadas, famílias melhoraram financeiramente e levamos o nome da nossa comunidade para todo o País"

Ceilda de Oliveira

Artesã

"O crochê se confunde com minha vida e me emociono sempre que recordo tudo que consegui conquistar. Porém, o que ele me trouxe de mais valioso foi o aprendizado que eu era capaz de vencer qualquer batalha"

Maria Miguel de Oliveira (Rosinha)

Idealizadora da Associação

"Minha vida, nos últimos dois anos, mudou completamente, depois que aprendi a fazer o crochê. Além de trabalhar em casa, perto do meu filho, produzo feliz e com uma renda quase quatro vezes maior"

Nádia Risocélia da Costa

Crocheteira

Mais informações:

Associação Comunitária do Sítio Mocotó

Zona rural de Várzea Alegre

Telefone: (88) 3541-1776