"Migração de retorno" acelera disseminação do coronavírus no CE
Especialistas alertam para o risco de disseminação da Covid-19 diante do intenso fluxo de pessoas vindas de áreas onde há elevado número de casos do novo coronavírus. Barreiras sanitárias são alternativas para conter o avanço
Deparar-se com o novo causa, quase que naturalmente, incertezas quanto ao futuro. Experimentar o inédito requer adaptação e aprendizado em tempo real. Tem sido assim o nosso cotidiano durante a pandemia do novo coronavírus.
A dúvida que paira por sobre o amanhã faz com que muitos adotem medidas cautelares pensando no hoje, como são os casos daqueles que, no passado, tentaram a sorte em outras cidades diante da ausência ou limitação de oportunidades em sua terra natal, mas que agora retornam às suas casas. Esse fluxo migratório de retorno, no entanto, pode estar contribuindo para a rápida disseminação nos casos do novo coronavírus. Antes restrita à Capital cearense e aos municípios mais populosos, a Covid-19 agora já está presente em mais da metade das cidades do Estado. Para especialistas, as rodovias têm papel de destaque nesta difusão.
O presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece), Nilson Diniz, lembra que, historicamente, há um grande fluxo de cearenses para a região sudeste do País. Contudo, o avanço da doença em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, está empurrando de volta ao Sertão dezenas de trabalhadores que "perderam seus empregos em indústrias, restaurantes, lojas e etc", explica Diniz.
O economista Klériston Monte, prevê que essas mudanças no comportamento da tradicional linha migratória do sertão nordestino para a região sudeste do Brasil deve se intensificar ao passar dos meses. "Não sabemos ainda qual a extensão e duração do impacto da atual crise econômica, o fato é que postos de trabalho foram fechados nos grandes centros urbanos e essa massa de trabalhadores, de forma individual ou com a família, está retornando para o interior do Nordeste brasileiro". O médico infectologista e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ivo Castelo Branco, demonstra preocupação com este cenário. Segundo ele, "há um risco elevado de contaminação, já que muitos podem estar infectados e não manifestar sintomas". O especialista adverte que, o ideal, era "não existir deslocamentos", mas reconhece que diante da crise econômica causada pelo coronavírus, muitos não têm como sobreviver longe de casa.
Nestes casos, Ivo ressalta a importância de acompanhamento do estado de saúde de cada migrante e aumento no rigor da fiscalização nas estradas cearenses.
Medidas
Esse segundo ponto já está sendo posto em prática em, pelo menos, em 30 cidades que implementaram barreiras sanitárias em suas fronteiras como medida de contenção do deslocamento. Para adentrar o município, a pessoa é submetida a um questionário com informações sobre o estado de saúde e cidades que recentemente viajou. Em alguns casos, como Guaramiranga, é recomendado a adoção de quarentena de sete dias para evitar risco de contaminação por pessoas assintomáticas.
O assessor jurídico da Aprece, Miguel Brasil, destaca que a implantação destas barreiras está amparada legalmente (lei federal Nº 13.979) e que o município possui elementos jurídicos para barrar a entrada de pessoas que possam "ser agentes propagadores da Covid-19". Brasil explica que o direito básico de ir e vir não é absoluto e, portanto, quando fere o coletivo, deve haver regulamentações. "Sempre prevalece o todo, o coletivo", diz.
O também assessor jurídico da Associação, Lincoln Diniz Oliveira, acrescenta que as cidades "têm amparo legal para tomar providências para restrições temporárias e excepcionais" quando existir risco de contaminação. Brasil, no entanto, adverte. "Antes da decisão, deve-se ser analisado dois preceitos legais: proporcionalidade e racionalidade do ato, e sempre lembrando o beneficiamento do coletivo".
Lincoln pontua, também, que quando necessário, o município pode determinar compulsoriamente medidas profiláticas, "como exames médicos, adoção de quarentena, estudo ou investigação epidemiológico e restrição temporária. Tudo isso está previsto no artigo 3º".
Clandestinos
Porém, apesar de as barreiras sanitárias terem seu grau de importância, o geógrafo e professor do Instituto Federal de Educação do Ceará (IFCE), campus de Iguatu, Leandro Lima, explica que o principal gargalo está nos transportes clandestinos. "Esse movimento que chamamos de migração de retorno, ocorre principalmente por vias clandestinas que entram no Ceará por Pernambuco e Paraíba e agora, por último, usando rota pelo Piauí". Para Nilson Diniz, a capilaridade das rotas é grande e a fiscalização "infelizmente é precária" o que acaba favorecendo a chegada de ônibus clandestinos. Segundo o presidente da Aprece, "falta controle do Estado". O Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE) garantiu, entretanto, a ampliação da vigilância nas divisas cearenses. Nas últimas semanas, fiscalizações do órgão, da Polícia Rodoviária Federal e da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) culminaram na apreensão de diversos veículos. O número exato não foi repassado à reportagem.
O mais recente caso aconteceu, na última segunda-feira (21), quando um ônibus com cerca de 30 passageiros provenientes de São Paulo foi apreendido em Ipaumirim. Os passageiros tinham como destino os municípios de Quixelô, Lavras da Mangabeira e Iguatu. Esta última cidade possui o segundo maior número de óbitos (5) por Covid-19 no Estado.
Um agente da PRF em Icó, que pediu para não ser identificado, explica que mesmo diante da intensificação na fiscalização, "os motoristas destes veículos conhecem desvios e fogem de postos da Polícia por atalhos, estradas de terra". Diante destas dificuldades, o advogado Miguel Brasil recorda que a própria população poderia auxiliar neste trabalho, denunciando a chegada destes veículos para "que o município tivesse ciência e, desta forma, pudesse monitorar essas pessoas, preservando a saúde de todos".
Medidas estão sendo adotadas para conter o avanço do novo coronavírus, como bloqueios sanitários e fiscalização nas estradas cearenses, para barrar ônibus clandestinos