Uma doença que dizimou milhares de brasileiros no século XIX já se tornou temas de vários estudos
Fortaleza O nordestino é, antes de tudo, um forte. É "cabra da peste". A construção desse ser ganha contorno especial a partir da epidemia da cólera no século XIX, que dizimou número expressivo da população, mobilizando segmentos variados na luta contra o mal. Já se vão 150 anos do fenômeno e o tema já mereceu diferentes abordagens de estudo. No Ceará, a doença chegou tardiamente, mas estima-se que cerca de 11 mil pessoas morreram. Na História, o professor Dhenis Silva Maciel defendeu a dissertação "Valei-me São Sebastião: a epidemia de cólera-morbo na Vila de Maranguape (1862-1863)". Parte do estudo foi publicado com o livro "Ceará: Economia, Política e Sociedade (Séculos XVIII e XIX)".
Professor Dhenis Maciel realiza pesquisa no Arquivo Público do Ceará fotos: fabiane de paula
O pesquisador diz que uma das motivações para o estudo foi o trabalho de Rodolfo Teófilo, em sua experiência como médico na época de ocorrência da doença. Maranguape recebeu o direito de ser vila em 1851, um ano após ter trocado de padroeiro. Antes era São Sebastião e passou a ter Nossa Senhora da Penha como padroeira. Na época, muitos acreditaram que o cólera foi um castigo pela troca de padroeiro, segundo identificou na pesquisa.
Ele avaliou edições dos jornais "O Cearense", que circulou em Fortaleza e adjacências na segunda metade do século XIX, bem como "O Araripe". Também pesquisou cartas dos médicos que, na época, enviavam para os presidentes da Província. Foram sete médicos diferentes. Ele considerou as correspondências de três: Marcos Teófilo, pai de Rodolfo Teófilo; Rufino de Alencar, filho do então padre Francisco Rodovalho de Alencar; e Pedro César, que chegou na vila, mas, no dia seguinte faleceu vítima da doença. As cartas integram acervo do Arquivo Público do Ceará. Dhenis Maciel também estudou os relatórios dos presidentes da Província. Muitos documentos foram encontrados no arquivo on line disponibilizado pela Biblioteca Central de Pesquisa, ligada à Universidade de Boston (EUA). Considerou, ainda, obras de cronistas como Barão de Studart, Rodolfo Teófilo, entre outros.
O historiador seguiu a metodologia da pesquisa bibliográfica qualitativa, baseando-se no método da História Social. Para isto, considerou o pesquisador Jean Delumeau no referencial teórico, porque este autor trabalha com a construção do medo no Ocidente. Segundo observou, o cólera motivou entre os moradores de Maranguape medos de diversas ordens, em relação à doença, ao desconhecido, às causas transcendentais do cólera. A partir dele, avaliou o porque dos devocionários de São Sebastião. Este santo que sobreviveu aos ataques das flechas e também com o poder de superar o cólera. Um dos principais nomes da história da saúde nesse contexto, Dilene Raimundo, também foi considerado na pesquisa para compreensão da peste. Um dos principais teóricos na pesquisa em História, Thompson, também fundamentou o referencial teórico. Segundo Dhenis, este autor desenvolveu um método de trabalho que busca compreender o acontecimento a partir da percepção das pessoas. Entre as conclusões, o historiador aponta que, a doença, mais do que um acontecimento, é uma construção. É o que diz o teórico Edgard Morin, é o "olhar, olhando". O estudo identificou diferentes percepções para o mesmo fenômeno, no caso, a epidemia de cólera.
Em 1862 foi o ano em que a doença chega pela primeira vez no Ceará, já tendo ocorrência pela País desde 1855. Doença de veiculação hídrica, rapidamente se espalhou em Maranguape, terra de muito verde e de muitas fontes de água. Antes de chegar ao Estado, o Ceará era considerado terra livre da doença, de clima salubre, principalmente em áreas de serras. Mito que foi desbancado, com a disseminação da peste em Maranguape.
Etiologia
"Aprofundamos o nosso conhecimento sobre a etiologia da doença, pois buscávamos entender as representações que dela foram feitas. Foi justamente quando buscamos olhar para as representações, que esta pesquisa teve uma ampliação em seu foco. Acreditamos que, para compreender as representações, é fundamental a análise da cultura circundante ao objeto representado e a representação produzida", afirma o historiador, entre as suas considerações finais. "Esta busca pela compreensão das representações nos levou a ver como a doença foi pluralizada, de acordo com os múltiplos olhares que a apreenderam dentro de sua ordem explicativa e a interpretaram", avaliou.
Ele concluiu que a doença, no âmbito da pesquisa, tornou-se um fenômeno cultural, transcendendo o aspecto de apenas ser uma moléstia causada pelo vibrião colérico, contraído pela água contaminada e que provocava série de sintomas, tais como vômitos, evacuações e desidratações fatais. "Uso a expressão fenômeno para deixar claro que creio ser a doença um momento de fratura, de exceção, um apartamento na normalidade e que deixa evidente relações sociais, permitindo o pesquisador vislumbrar, a partir do extraordinário, questões que, via de regra, passam silenciosas".
Mortes 11
mil pessoas, aproximadamente, morreram vítimas do cólera no Estado do Ceará. A epidemia da doença aconteceu durante o século XIX
VALÉRIA FEITOSA/ELIZÂNGELA SANTOS
EDITORA DO REGIONAL/ REPÓRTER