Voluntários doam tempo e partes de si para ajudar outras pessoas

Seja ao entregar uma mecha de cabelo para servir de peruca a quem perdeu o seu ou extrair uma bolsa de sangue para salvar até quatro vidas, doadores mostram que um único ato solidário pode se transformar em corrente do bem

Legenda: Aos 11 anos, Melissa renunciou à vaidade para tentar ajudar quem perdeu o cabelo em tratamento de câncer
Foto: foto: ISANELLE NASCIMENTO

Os fios castanhos-escuros, longos e ondulados, emolduravam perfeitamente o rosto redondo e infantil de Ana Melissa, 11, combinando com os olhos de mesmos brilho e cor. A imagem do espelho, porém, não foi a primeira estampada na mente quando a menina resolveu, "do dia pra noite", cortar o cabelo e doar à Associação Peter Pan (APP), que atua no tratamento de câncer em crianças e adolescentes, em Fortaleza. Para ela, ainda que seja menina, doar uma parte de si foi uma forma de chegar ao outro - e transformá-lo.

A razão para Melissa abrir mão dos fios e adotar o corte médio, assim como a atitude, é das mais nobres. "Decidi doar porque não gosto das pessoas tristes e carecas. Vi o pessoal triste, sem cabelo, internado, e falei pra minha mãe que queria doar meu cabelo pra elas. Acho que elas vão ficar felizes quando receberem. Fico feliz quando ajudo as pessoas", revela, com um sorriso que torna impossível decifrar, à primeira vista, a preocupação que se esconde por trás: a suspeita de câncer que a ronda.

Antes de completar dois anos de idade, Melissa foi diagnosticada com neuroblastoma, tipo câncer que surge nas glândulas acima dos rins. O processo, como relembra a mãe, Francisca Edna Silva, 51, foi longo - tanto que o hospital se tornou casa durante um ano inteiro. "Em 2010, ela fez uma cirurgia, teve um AVC, passou pela UTI e recebeu o diagnóstico. Na primeira semana de 2011, começaram as sessões de quimioterapia. Ela perdeu todo o cabelo, nessa época", relata a mulher, que se tornou autônoma para se "dedicar 100%" à filha.

A atitude voluntária de Melissa ao querer doar parte de si e da própria aparência a outra criança ou adolescente foi, para a mãe, um presságio. "Eu fiquei impressionada, porque chegaram a oferecer R$ 450 pelo cabelo dela, há um ano, e ela não quis vender. Uma semana atrás, ela começou com essa ideia de querer 'cortar e doar pros carequinhas'. Ontem, dias depois, ela fez um ultrassom e tem vários linfonodos no pescoço. Fiquei pensando: 'Senhor, será que ela tava adivinhando isso?'", preocupa-se Edna, temendo o retorno da doença à vida da pequena.

Hoje, além da mecha da filha, a autônoma guarda outras três para levar à APP. "Tenho amigas que têm salão de beleza, arrecado as mechas e levo pra lá. Fui a um salão e uma moça tinha duas mechas pra vender, aí quando contei a história da Melissa ela resolveu foi doar. Ao todo, já tô com quatro mechas. Mês passado, levei sete pra associação", orgulha-se a mãe-militante, depositando - e recolhendo um tanto - no abraço da própria filha a esperança de uma cura como presente de Natal.

Empatia

É justamente a realidade de crianças como Melissa e as "carequinhas" a quem ela tanto quer fazer o bem que comove Daniel Silva, 32. Desde que alcançou a maioridade e passou a observar as vivências de pacientes na luta contra o câncer, principalmente os infantis, o jovem se sensibilizou. Doar parte do próprio DNA a quem necessita, então, é compromisso firmado na vida dele - muito embora a primeira doação tenha sido, como confessa, por motivação própria.

"Na época, meu interesse não era solidário assim. Era mais porque provas de concurso e de vestibulares tinham isenção para quem doasse. Só que, com o passar do tempo, a gente vai entendendo a importância do ato, que afinal de contas, não é individual: é de ajudar o próximo", reflete.

Ainda que as náuseas, formigamentos e até certa dor façam parte do processo de doação, Daniel reconhece que o desconforto "não se compara" ao que os pacientes enfrentam na busca pela saúde. Em campanhas solidárias, comuns ao período natalino, surgem mais iniciativas de doação - mas o jovem alerta que as ações precisam se tornar hábito. "Todos os dias existem pessoas precisando disso: esses casos de câncer ou de outras doenças tão graves quanto acontecem durante todo o ano. Se você se importar só nessas épocas? Não dá. As pessoas necessitam todas as horas", alerta o doador.

A mesma consciência motivou a farmacêutica Bianca Araujo, 24, a nutrir coragem de compartilhar o sangue - desejo que a perseguia desde a adolescência.

"Meu pai é doador assíduo, e isso me fez querer doar também. Mas eu tinha resistência, porque tinha histórico de anemia. Depois de um tempo, fiz exames e vi que tava curada disso. Houve um evento na faculdade, passei pela triagem e fiz a primeira doação", relembra Bianca.

A perspectiva de salvar "até quatro vidas" estimulou a veia solidária da jovem, que logo deu um passo adiante. "No momento da doação, eles perguntam se você quer fazer parte do banco de medula, e me inscrevi logo. Você saber que pode ajudar a salvar a vida de alguém é um ato muito nobre. É muito difícil encontrar um doador de medula compatível, então quanto mais você puder cadastrar pessoas nesse banco e aumentar as chances de quem tá na fila precisando, melhor", explica.

Doar-se

Voluntários que desejam doar sangue devem estar saudáveis, pesar acima de 50kg, ter entre 16 e 69 anos de idade, e apresentar documento de identificação com foto em um dos postos de doação. Para cadastro como doador de medula óssea, informa o Hemoce, é necessário ter entre 18 e 55 anos, não ter tido câncer, apresentar documento com foto e, por fim, assinar um Termo de Consentimento.

Já para efetuar doação de cabelo, o voluntário deve seguir orientações específicas e levar as mechas até a Associação Peter Pan, no bairro Vila União. "A criança ou adolescente que trata câncer perde o cabelo, fica muito mais vulnerável. E poder receber a peruca de outra pessoa mexe com a autoestima, principalmente do adolescente. Nós agradecemos a quem se solidariza", frisa Sandra Salgado, gerente de atividades sociais da APP.

A empatia de Melissa, mesmo com tão breves 11 anos, e a sensibilização de Daniel, precedida por uma ideia de autobenefício, demonstram formas de ser luz em meio ao escuro - ideia resumida, com propriedade, por Bianca. "Com tudo o que vem acontecendo no mundo, a sociedade tem ficado cada vez mais fria. As pessoas estão se sensibilizando menos com a história de vida das outras. E não quero perder isso, eu gosto de ajudar as pessoas. É mais cômodo ajudar quem você conhece, mas e fazer isso por quem você nem conhece? Uma bolsa de sangue, por exemplo, pode salvar até quatro vidas. Eu nem conheço as pessoas que eu posso ter salvado, mas pra elas foi importante - foi uma chance de ficar mais tempo por aqui".