Tecnologia na saúde mental da mulher: aliada ou vilã?

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Inteligência artificial? Assistentes virtuais? Internet das coisas? Os usos desses complexos termos tecnológicos propagam-se cotidianamente nos noticiários e progressivamente compõem a linguagem habitual dos cidadãos comuns, aqueles não versados na hermética ciência do mundo da tecnologia da informação. Esta realidade midiática não surpreende, na medida em que – segundo pesquisa de 2018 do BankMyCell – foi evidenciada a existência de mais telefones celulares que pessoas no mundo (um excedente de quase 1 bilhão de aparelhos).

Nesse contexto, a área da saúde vem passando também por revoluções tecnológicas, ainda que em cadência mais lenta, face a questões regulatórias e éticas próprias ao meio. Hoje qualquer pessoa com um simplório modelo de celular pode monitorar seu padrão de sono; nível de atividade física por meio da contagem de passos e quantificar a ingestão nutricional, apenas para citar alguns parâmetros. Na contramão do exposto, o uso excessivo dos mobiles também pode trazer reconhecidas consequências negativas, a saber: isolamento social, insônia, aumento dos níveis de ansiedade e depressão etc.

No âmbito da saúde mental, as novidades compreendem algoritmos de inteligência artificial, conjuntos de regras operadas de forma automatizada por uma máquina. Alguns estudos indicam que eles são capazes de predizer, de forma mais precisa que um psiquiatra, qual a chance de um determinado paciente tentar suicídio, a partir da análise de sua linguagem, ou de desenvolver uma depressão, por meio da verificação do conteúdo que a pessoa adiciona em suas redes sociais. De forma igualmente assustadora, aplicativos de conversação (chatbots), sem intervenção humana, são capazes de dar suporte aos indivíduos portadores de transtornos mentais, e estudos recentes indicam alta
satisfação destes.

Pressupõe-se que populações especialmente vulneráveis à incidência de transtornos mentais tenham potencial de serem as mais beneficiadas por intervenções tecnológicas que permitam acesso amplo aos cuidados psicossociais. Nesse sentido, sabe-se que as mulheres, em nível mundial, têm cerca de duas vezes mais depressão e ansiedade que homens, quer por aspectos próprios da natureza biológica (variabilidade hormonal, com risco acentuado no período perinatal, pré-menstrual e climatério), quer por qualidades subjetivas de suas vivências psicossociais mais amplas (maiores taxas de violência, sobrecarga nos cuidados aos filhos, seguindo os papéis de gênero tradicionais).

Isto posto, como atingir um amplo contingente de mulheres em estado de grave enfermidade psíquica, estranguladas pela patologia de um lado e do outro pela insuficiência da rede assistencial, notadamente a nível de saúde pública? Ademais, como personalizar o tratamento às mulheres, de acordo com as necessidades pertinentes ao seu mundo? Qual o caminho para fomentar acesso facilitado ao tratamento em uma mulher com depressão pós-parto, muitas vezes amamentando um bebê recém-nascido e com a mobilidade reduzida em virtude de um parto cesáreo?

É possível que parte da resposta se encontre nos aparatos tecnológicos, coadjuvantes no processo de identificação e tratamento precoces das patologias mais habituais no âmbito da saúde mental da mulher. Já existem algumas pesquisas que endereçam o uso de aplicativos para dispositivos móveis que são capazes de rastrear com precisão o risco de depressão pós-parto, empregando algoritmos de inteligência artificial que utilizam dados simples (parâmetros socioeconômicos e antecedentes psiquiátricos). Além disso, aplicativos que permitem monitorar o padrão de ciclo menstrual já são empregados no campo da fertilidade feminina e diários de registros do humor poderiam ser integrados para facilitar o diagnóstico do transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM), a famigerada “TPM”.

No campo dos atendimentos a distância, as possibilidades são variadas. Suponha que uma gestante com grave quadro de ansiedade e depressão tenha sofrido um sangramento e que seja desejável um plácido repouso domiciliar em prol do bem-estar materno-fetal. Como promover uma assistência psiquiátrica mais constante a essa paciente com sérias restrições na mobilidade? A telemedicina, na forma de atendimento a distância para pacientes que necessitam de uma assistência não presencial, ainda não é aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), mas parece avizinhar-se a essa modalidade como uma realidade tangível.

Há um sem-fim de possibilidades para futuramente ofertar às mulheres um caminho para um pronto restabelecimento da saúde mental, mas será que não há efeitos colaterais da tecnologia? Não estaria o solitário mergulhar nos smartphones umbilicalmente ligado com a precipitação de transtornos mentais? A fria tela do dispositivo não seria um pobre e desalentador substituto para a calorosa interação, face a face, do profissional que assiste? Decerto que os temores não são sem razão, mas é prudente construir a compreensão da tecnologia como um método facilitador da cobertura e ponte para diagnósticos mais rápidos, precisos e terapêuticas mais incisivas.

Dito de outro modo, além da otimização clínica, os hardwares e softwares funcionariam como poupadores de tempo aos profissionais, de modo que estes poderiam investir mais em cultivar a única tecnologia que as máquinas não são aptas a incorporar: as capacidades humanas inatas do afeto e empatia pela dor daquele que sofre no pedregoso percalço da assistência.

Por Dr. Igor Emanuel
(@drigoremanuelpsiquiatra)
Médico psiquiatra e Coordenador do Psicomater na Maternidade Escola Assis Chateaubriand; Membro da Comissão de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria; Sócio-administrador da I Psi Clinic.

Legenda: Dr. Igor Emanuel
Foto: Eduardo Maranhão/ Divulgação