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O combate ao esgotamento: como a política no Brasil tem lidado com as novas demandas do trabalho

O Diário do Nordeste mapeia, com a ajuda de especialistas, como a classe política e o Poder Público lidam com a questão

Escrito por
Bruno Leite bruno.leite@svm.com.br
Plenário da Câmara dos Deputados
Legenda: Na Câmara dos Deputados, cerca de 80 matérias em tramitação trazem a Síndrome de Burnout em sua redação
Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados

Somente no ano passado, o Brasil registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais. O volume é o maior em dez anos da série histórica. O exercício do direito, por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), produziu tais dados, computados pelo do Ministério da Previdência Social. Eles revelam uma crise na saúde mental no contexto do trabalho no País, além da necessidade de medidas que possam conter o avanço dessa problemática.

O INSS contabilizou causas como afastamentos por diagnósticos de ansiedade, depressão, depressão recorrente, transtorno bipolar, vício em drogas, reações ao estresse grave e transtornos de adaptação, esquizofrenia, alcoolismo, vício em cocaína e até mesmo psicose, como os motivos com maior peso no número de afastamentos. Pela dificuldade de diagnóstico, a condição de exaustão relacionada ao trabalho — conhecida como Síndrome de Burnout — aparece em menor número entre os casos.

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Embora seja alegada a dificuldade de diagnóstico, esse tipo de exaustão é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1990. A ocorrência tem como causas o estresse crônico e tensão emocional, fatores observados com frequência na dinâmica laboral acelerada dos dias atuais, em que a produtividade e as constantes mudanças imperam. No ranking mundial de casos da doença, o Brasil ocupa a segunda posição.

Nesta matéria, o Diário do Nordeste mapeia, com a ajuda de especialistas, como a classe política e o Poder Público têm lidado com a questão e elaborado medidas que possam combater o esgotamento diante das novas demandas do mundo do trabalho.

Propostas em vigor ou em andamento

Na esfera política brasileira, a implementação de uma certificação para o reconhecimento de empresas promotoras da saúde mental, com a sanção de uma lei pelo Palácio do Planalto, em março do ano passado, e a atualização de normas como a que incluiu a avaliação de riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (SST), em agosto último, fundamentam alguns dos esforços do Poder Público para mitigar o impacto desse agravo.

Neste ano, o Ministério da Saúde baixou uma resolução para instituir o Plano Nacional de Valorização e Proteção dos Trabalhadores de Saúde Mental (PNSMT). E, antes, em 2012, a pasta instituiu a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSST), com a identificação de agravos à saúde mental como prioridade, pelo Ministério da Saúde. Outros mecanismos como cartilhas, parcerias de instituições e programas diversos compõem um arcabouço de medidas.

Entretanto, boa parte das iniciativas que sugerem a inclusão de políticas na letra da lei ainda são proposições. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, tramitam cerca de 80 iniciativas que versam especificamente sobre Burnout. Uma delas, conforme levantou o Diário do Nordeste, é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que busca extinguir a jornada de trabalho 6x1, reduzindo a carga horária permitida na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), da deputada federal Érika Hilton (Psol). 

Na mesma Casa, ainda tramitam outras medidas, seja para a proteção de categorias, como o projeto de lei 1606/2025, do deputado federal Marcos Tavares (PDT), que dispõe sobre programas de suporte psicológico para advogados; ou para incluir na CLT um intervalo de pausa para a saúde mental, como no projeto de lei 1909/2025, da deputada federal Rogéria Santos (Republicanos). Apesar disso, não há registros de matérias do tipo em tramitação no Senado Federal.

Em maio, uma das propostas sobre o esgotamento mental no trabalho ganhou ritmo no Legislativo, o projeto de lei 5063/23, da deputada federal Maria do Rosário (PT), cujo objetivo é instituir uma política de apoio e prevenção da estafa mental ou Burnout relacionado à maternidade. Ela passou a avançar na Câmara do Deputados em regime de urgência, após aprovação dos parlamentares, podendo ser votada diretamente no Plenário, sem ter que passar antes pelas comissões. 

Contexto adoecedor

De acordo com a professora Maxmiria Holanda Batista, doutora em Saúde Coletiva pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e docente da Universidade Federal do Ceará (UFC), "o cenário de agravamento das doenças relacionadas ao trabalho, especialmente os transtornos mentais, reflete a intensificação das exigências laborais no contexto contemporâneo, marcado por transformações nas formas de gestão, precarização dos vínculos e instabilidade econômica".

A estudiosa mencionou que as jornadas excessivas, metas abusivas, o assédio moral, a insegurança contratual, entre outros fatores, contribuem para o aumento de casos. "A lógica da produtividade a qualquer custo tem levado muitos trabalhadores e trabalhadoras ao esgotamento físico e psíquico", analisou a entrevistada, mencionando ainda a intensificação do trabalho e o encolhimento das redes de proteção social.

Segundo ela, existem elementos que apontam para categorias que são mais vulneráveis a esse tipo de agravo. "Há consenso na literatura científica e nos dados institucionais de que profissões ligadas ao cuidado, à segurança pública, à educação, bancários, teleatendimento e à tecnologia da informação são mais suscetíveis ao esgotamento mental e a outros transtornos mentais", listou Maxmiria Batista.

O entendimento é semelhante ao explicado pelo professor Iratan Bezerra de Sabóia, doutor em Psicologia pela UFC e docente da mesma instituição de ensino. Para ele, "diversos fatores têm que ser considerados para que possa ter uma visão mais completa do cenário". 

Na visão dele, se trata de uma questão "multifatorial". "É preciso pensar, principalmente, no tempo que o trabalho ocupa nas nossas vidas e na aceleração da vida em função do trabalho", discorreu Sabóia, elencando ainda o "empobrecimento geral da população" como um fator social que influencia a dinâmica laboral e favorece o adoecimento.

Para Iratan, a resposta do Poder Público "tem sido bem aquém daquilo que é necessário". Ele pontuou que existe uma atualização na  Norma Regulamentadora nº. 1 (NR-1), que cria a obrigatoriedade das empresas fazerem gestão de risco psicossocial no meio ambiente, mas questionou a efetividade desse regramento.

"O problema não são só as empresas, é o sistema como um todo, é o sistema no geral. Nós vemos um sistema que não é orientado para pessoas, mas para consumo, para produção, para circulação de mercadorias", falou o professor da UFC. 

Instrumentos de coibição

Atualmente, a NR-1 é a principal norma que estabelece disposições sobre a temática da saúde mental, de forma a prevenir a problemática dos transtornos mentais no contexto do trabalho. Também é ela que estabelece disposições gerais sobre segurança e saúde no trabalho no Brasil. 

A previsão sobre a questão da saúde mental foi incluída no ano passado, por meio de uma revisão realizada através de portaria baixada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que estipula multas a quem desobedecer a medida. Essa foi a quinta atualização do texto desde a sua edição, em 1978. A inclusão do tema na norma foi uma resposta do governo para a escalada de casos de afastamento.

Estão no escopo da norma a fiscalização de metas abusivas, assédio moral, jornadas exaustivas, ausência de apoio organizacional, conflitos interpessoais e condições precárias de trabalho. Eventuais infrações poderão acarretar em multas de até R$ 6 mil.

Fachada do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério da Previdência Social.
Legenda: Norma que pode coibir e fiscalizar ações que fomentam transtornos mentais foi baixada pelo MTE no ano passado
Foto: Pedro França/Agência Senado

Na lei, outros dispositivos que possam coibir práticas que ocasionem o esgotamento mental ou outros agravos no ambiente de trabalho, também são recentes, como lembra a professora de Direito do Trabalho e Processos do Trabalho na Unifor, Williane Pontes.

Conforme exemplificou a professora, até a Reforma Trabalhista de 2017, não havia um dispositivo na CLT que garantisse ao trabalhador a possibilidade de processar o empregador sob a alegação de dano extrapatrimonial. "Utilizávamos o Código Civil e dizia que isso se aplica ao processo do trabalho", salientou.

Regramentos como a NR-1, pelo que pontuou Williane Pontes, não têm o poder de uma lei ordinária, mas "têm muita força", por serem objeto de fiscalização pelo Ministério do Trabalho. "Obviamente, com base nessa fiscalização e nessas normas, as empresas podem ser autuadas", comentou a especialista.

Inicialmente, o Governo Federal previa que a atualização para mitigar riscos à saúde mental no ambiente de trabalho passasse a vigorar em 26 de maio. No entanto, com a proximidade do prazo, no mês passado a administração adiou a cobrança para maio do próximo ano e irá aplicá-la, até lá, de forma educativa, sem a aplicação de multas no período.

Aprimoramentos e possíveis brechas

Indagada sobre aprimoramentos pelo Poder Público, Maxmiria Batista alertou que "é urgente a construção e implementação de uma agenda intersetorial e estruturante, com ações integradas de prevenção, proteção e reparação da saúde mental no contexto laboral". 

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De acordo com a profissional, ela deve ser pautada nos princípios da dignidade do trabalho, da centralidade da vida e da justiça social. No rol de sugestões da especialista está a de que outras Normas Regulamentadoras (NRs) do MTE precisam prever efetivamente a regulamentação dos riscos psicossociais. Também seria necessário avançar com propostas de regulamentação específica sobre assédio moral e assédio sexual no trabalho.

A agenda proposta pela docente também englobaria protocolos institucionais obrigatórios para colhimento, registro, notificação e monitoramento de casos de sofrimento psíquico no trabalho, o estímulo à adoção de práticas organizacionais saudáveis, o fortalecimento da fiscalização trabalhista e a promoção de campanhas nacionais permanentes de conscientização.

No aspecto legal, Williane Pontes afirma não acreditar em falhas na legislação. "É princípio, no processo do trabalho, quando não tenha algo específico, recorrer no processo civil", justificou. Para ela, diante do crescente número de casos de afastamento, a legislação "está tentando correr atrás".

"O Direito do Trabalho é muito dinâmico e as relações vão evoluindo muito rápido, e a legislação sempre vem atrás tentando alcançar", argumentou em seguida. "Os fatos sempre vêm na frente da legislação", justificou.

A reportagem acionou o Ministério do Trabalho, a fim de obter informações da pasta sobre quais saídas estão sendo discutidas pelo Governo Federal para ampliar a proteção do trabalhador e evitar os transtornos mentais no ambiente de trabalho. Não houve resposta até o fechamento desta matéria. O conteúdo será atualizado caso haja uma resposta.

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