A disputa pelo voto religioso nas campanhas municipais no Ceará

O peso deste segmento ganhou força nos últimos pleitos e tem influenciado nas estratégias dos candidatos

Em breve, estudantes da rede de ensino estadual podem ter acesso a bíblias em todas as escolas do Estado. A medida foi uma promessa do governador Elmano de Freitas (PT) sendo aprovada pela Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), em meio a um embate: apesar de favoráveis à proposta, deputados estaduais oposicionistas criticaram o suposto tom "eleitoreiro" da ação.

O motivo foi o momento escolhido para a discussão do projeto de lei de autoria do deputado Apóstolo Luiz Henrique (Republicanos). O projeto de indicação foi aprovado na quarta-feira (14), faltando apenas dois dias para o início da campanha eleitoral nas cidades cearenses. 

A construção de estratégias para atrair o eleitorado religioso não é novidade — ou um fenômeno inédito na eleição de 2024. O crescimento das bancadas religiosas no parlamento e a discussão frequente da agenda de costumes, além do aumento do eleitorado evangélico são alguns dos fatores que explicam o peso deste segmento em uma disputa eleitoral.

"Aparentemente, (é) uma questão que não é central para a cidade... O prefeito pode fazer pouca coisa em relação à fé. Mas por que isso se torna uma agenda? Porque os atores que estão no campo político vão mobilizando isso como algo importante", explica o professor de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Emanuel Freitas.

Estratégias eleitorais em Fortaleza

Na disputa de Fortaleza, os signos relacionados à religião aparecem de diferentes formas nas estratégias dos candidatos. Freitas cita, por exemplo, a escolha das candidatas a vice nas chapas do ex-deputado federal Capitão Wagner (União) e do deputado federal André Fernandes (PL).

A conselheira tutelar Edilene Pessoa (União), que é evangélica e ligada à Assembleia de Deus, foi a escolhida para ser companheira de chapa de Wagner. Já a advogada Alcyvania Pinheiro, que é da Comunidade Católica Shalom, é a vice de Fernandes. 

Ainda no campo da direita, o senador Eduardo Girão (Novo) possui forte discurso ligado ao cristianismo, inclusive com forte mobilização contra o aborto e "pró-família". Por sua vez, o ex-deputado estadual George Lima enfatizou, ao oficializar a candidatura, que a base das propostas dele gira em torno da "evangelização". 

O discurso voltado a atrair o eleitorado religioso é presente mesmo em candidatos de partidos mais ligados à esquerda. O  prefeito José Sarto (PDT) fez acenos ao segmento religioso. Evangélico, ele citou em entrevista que o maior ídolo dele é Jesus. 

Presidente da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), Evandro Leitão (PT) fez publicação nas redes sociais citando a bíblia como "livro preferido". Na convenção do PT que oficializou o seu nome, Evandro afirmou que "não tem medo de responsabilidade, porque Deus me preparou". 

Para Emanuel Freitas, inclusive, a promessa de colocar bíblias em todas as escolas feita por Elmano é uma forma de "blindar" a candidatura petista. "Como o Evandro vai ter que defender muita coisa, uma acusação a mais seria ruim. Então, acho que esse feito do Elmano pode ser lido assim 'vamos blindar o Evandro, como candidato do PT, de uma acusação que persegue a fé. Como assim alguém que distribui bíblia persegue a Igreja?'", argumenta.  

"E aí tem uma campanha eleitoral cada vez mais distante do que deveria ser. (...) A eleição municipal entra nessa gramática (religiosa), porque os atores a levam. E fica muito confortável, porque você acaba não falando do que são os problemas da cidade".
Emanuel Freitas
Professor de Teoria Política da Uece

Se na majoritária, a importância do voto religioso cresce conforme o tamanho da cidade — e a aderência a uma pauta nacionalizada — nas disputas pelas câmaras municipais, a identidade religiosa pode ser mais efetiva para as candidaturas. "Para as disputas proporcionais, que o voto é mais fragmentado, pulverizado em várias candidaturas, acredito que esses elementos do religioso, essa identidade religiosa seja mais aderente para alguns postulantes, pode pegar mais forte", argumenta Torres. 

Capital versus Interior

Professora da Universidade Estadual do Ceará e pesquisadora do Laboratório de Estudos em Política, Eleições e Mídia (Lepem/UFC), Monalisa Torres pontua, no entanto, que existem diferenças na importância do voto religioso a depender da cidade. 

"A eleição municipal, sobretudo a majoritária, o eleitor está preocupado muito mais com as questões relacionadas à cidade. Isso é muito forte, principalmente no interior. O eleitor está preocupado com a rua, com a falta de iluminação, com o medicamento e o médico no posto de saúde. O eleitor está preocupado com isso, com o que lhe afeta diretamente, que afetam o seu cotidiano".
Monalisa Torres
Professora da Uece e pesquisadora do Lepem/UFC

Portanto, explica ela, a identificação religiosa não é um fator tão relevante na eleição municipal "principalmente em eleição majoritária em municípios pequenos do interior". "Nas capitais, é possível que tenha alguma repercussão em uma parcela mais ideologizada do eleitorado. Até porque essas questões mais ideológicas acabam pegando mais forte nas grandes cidades", completa.

Emanuel Freitas concorda que o peso é maior em capitais e em cidades maiores, principalmente quando existem candidatos que vêm do segmento religioso. Ele cita como exemplo a deputada estadual Dra. Silvana (PL), que concorre à Prefeitura de Maracanaú.  

"Na convenção, ela fez três promessas: não vamos ter ideologia de gênero na escola, não vamos ter banheiros que ela chamou de 'banheiro coletivo' e  também o estado laico vai ser respeitado aos moldes da maioria cristã. (...)  Então, a julgar pelo que ela falou na convenção e o que foi a convenção dela, vai ser uma campanha mesmo religiosa", cita o professor. 

Mudanças ao longo do tempo

Freitas lembra ainda que existem diferenças temporais no peso do voto religioso, inclusive em Fortaleza. "Vinte anos atrás você teve o segundo turno entre Moroni (Torgan, ex-vice-prefeito de Fortaleza) e Luizianne (Lins, deputada federal e ex-prefeita de Fortaleza), em que o Moroni construiu toda a argumentação do 2º turno em cima de um item do programa de governo da Luizianne que era 'abordagem positiva em relação à homossexualidade'".

O assunto foi inclusive central na propaganda eleitoral, com "uma atriz dizendo que não queria que os filhos dela aprendessem a ser homossexuais na escola". "Então, foi uma agenda moral mobilizada 20 anos atrás. Não deu certo. Se o Moroni não ganhou, a gente pode dizer que não deu certo há 20 anos. Então, significa dizer que, há 20 anos, essa não era uma questão importante", afirma.

A pauta religiosa foi novamente acionada em 2008, quando Luizianne Lins era candidata à reeleição. Na época, a Convenção dos Ministros das Assembleias de Deus Unidades do Ceará (Comaduec) espalhou cartazes com a seguinte inscrição: "Luizianne é contra a Bíblia e o Povo de Deus, diga NÃO a Luizianne". 

Segundo um representante da entidade, em reportagem do Diário do Nordeste de agosto de 2008, aquele era um "movimento contra a pessoa de Luizianne Lins que vetou projeto de lei na Câmara Municipal que obrigava a distribuição da Bíblia nas escolas e bibliotecas de Fortaleza". 

"Sem saber que a petista mesmo vetando, apresentou (e a Câmara Municipal aprovou), no fim do ano passado (2007), mensagem do mesmo teor da proposição do vereador Gelson Ferraz (PRB), autor da matéria vetada pela prefeita", completa o texto da reportagem. 

"Não deu certo também, porque a Luizianne foi reeleita. Então, a gente pode dizer que essa agenda não estava na ordem do dia", ressalta Freitas. "A virada de chave é exatamente a votação dos planos de educação". Ele se refere à elaboração e votação do Plano de Educação Municipal, que ocorreu, em Fortaleza, em 2015. 

"Esses sujeitos trazem, para o plano do Município, um pânico moral em torno das questões de gênero e de sexualidade", lembra. Ele explica que, a partir daí, existe uma crescente na importância do tema. "O peso foi se constituindo durante as últimas três eleições, porque você teve um acolhimento da pauta nacional referente à agenda de costumes, em especial depois do da votação dos planos municipais de educação".  

O que diz a legislação eleitoral?

Coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Caopel) do Ministério Público do Ceará (MPCE), o promotor Emmanuel Girão relembra as regras referentes à mobilização em torno de instituições religiosas. Girão reforça que não existe, na legislação eleitoral, a "figura do abuso de poder religioso". 

"A lei não traz essa nomenclatura. Inclusive, o TSE baixou uma resolução sobre os ilícitos eleitorais e ele fala exatamente sobre isso. (...) O que a lei veda é abuso de poder político ou de autoridade, abuso de poder econômico e uso indevido de veículos de comunicação social", cita. Contudo, isso não significa que não possam ser identificadas irregularidades relacionadas ao uso indevido da estrutura de igrejas e templos religiosos para favorecer candidaturas. 

"Quando você usa equipamentos, bens ou pessoas, isso vai caracterizar um abuso do poder econômico, porque é uma vantagem que os outros candidatos não têm. Então, se um candidato usar os obreiros de uma igreja, os seguidores de uma igreja, os equipamentos de uma igreja, a emissora de rádio, de televisão, ele terá uma vantagem que os outros candidatos não têm".
Emmanuel Girão
Coordenador do Caopel do MPCE

Nestes casos, a conduta pode se enquadrar em abuso de poder econômico — no caso do uso da estrutura do templo religioso — ou no uso indevido de veículos de comunicação social. 

O promotor lembra que, apesar de ser permitida a manifestação individual do líder religioso, o uso da Igreja para defender um candidato ou candidata também não é permitido. "Se ele junta as pessoas, lá no culto, e diz que que que o candidato é que é o bom para a igreja, que ele está alinhado com as propostas lá da igreja dele, aí é onde entraria (o ilícito eleitoral), porque ele está usando a estrutura, está usando o evento, que deveria ter um cunho religioso, para fazer propaganda eleitoral", explica.

A legislação eleitoral não permite a propaganda eleitoral em "bens denominados de bens de uso comum". "Da mesma forma que não é possível fazer propaganda eleitoral dentro de shopping center, de estádio de futebol, de lojas comerciais, cinema e teatro, também não é possível fazer dentro de templos religiosos, porque a lei denomina isso de bens de uso comum", explica Girão.

Portanto, o candidato também não pode usar desses espaços para fazer propaganda. "Como cidadão, a pessoa pode frequentar a Igreja. (...) Só que igreja é pra você cultuar a sua fé, não para você fazer campanha eleitoral, não para pedir voto", completa.