Decreto de Bolsonaro protagoniza novo embate com governadores

Especialistas entrevistados pelo Diário do Nordeste avaliam a medida adotada pelo presidente Jair Bolsonaro e as consequências políticas das ações tomadas pelo Palácio do Planalto. A ausência de diálogo é uma das dificuldades

Escrito por Luana Barros e Wagner Mendes ,
Legenda: Barbearias foram consideradas serviços essenciais pela União, mas o funcionamento segue proibido em vários estados
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Um decreto que se transformou em um novo capítulo de uma crise sem fim. Presidente da República e governadores, em mais uma oportunidade, se desentenderam. A inclusão de academias de esporte, salões de beleza e barbearias na lista de atividades essenciais no País, porém, não passou de uma recomendação de Jair Bolsonaro. Na prática, foi ignorada, e os governadores permaneceram com suas regras de prevenção à Covid-19. 

Desde março, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a autonomia de governadores e prefeitos em tomadas de decisões, como a adoção de maior restrição social, medida criticada pelo Palácio do Planalto desde o início da pandemia de Covid-19. 

Logo depois da publicação do decreto nas redes sociais, na última segunda-feira (11), veio a reação. O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), foi um dos primeiros a reagir contra a determinação de Bolsonaro. “Informo que, apesar do presidente baixar decreto considerando salões de beleza, barbearias e academias de ginástica como serviços essenciais, esse ato em nada altera o atual decreto estadual em vigor no Ceará, e devem permanecer fechados. Entendimento do Supremo Tribunal Federal”, declarou. 

Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão, disse que “Bolsonaro insiste em criar confusão”. “Ele briga com todo mundo. Só não briga com o coronavírus. Agora quer atropelar a forma federativa de Estado garantida pela Constituição”, escreveu o governador e ex-juiz federal nas redes sociais. 

O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), afirmou que “não há nenhum sinal de que as medidas restritivas sejam flexibilizadas” e que “estimular empreendedores a reabrir estabelecimentos é uma irresponsabilidade”. “Ainda mais se algum cliente contrair o vírus. Bolsonaro caminha para o precipício e quer levar com ele todos nós”, respondeu o ex-juiz federal. 

Nesta terça-feira, em tréplica, o presidente publicou nas redes sociais que “alguns governadores se manifestaram publicamente que não cumprirão” o decreto e disse que aqueles que não concordam com a medida poderiam “ajuizar ações na Justiça” ou entrar com “projeto de decreto legislativo” a partir de congressistas. Disse ainda que “afrontar o estado democrático de direito é o pior caminho”, que “aflora o indesejável autoritarismo no Brasil”, retrucou.

Confronto

Cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Paulo Baía avalia que a atitude do presidente de baixar um decreto sabendo da previsão do Supremo de independência dos estados e municípios foi estratégia política. “Bolsonaro, de maneira prévia e com consciência, quer, efetivamente, afrontar governadores e prefeitos, quer colocar a população dos municípios contra os prefeitos e a dos estados contra os governadores. Não é algo dentro de uma racionalidade”.

Para Baía, o confronto do presidente é na tentativa de criar uma narrativa governista em meio à pandemia, de “jogar permanentemente grupos sociais contra instituições”. “É a estratégia política dele. E vai continuar. Desde o início da crise mantém essa postura, inclusive tirou um ministro em função disso”, conclui.

É uma “jogada narrativa”, explica Monalisa Torres, cientista política da Universidade Estadual do Ceará. A pesquisadora argumenta que “o Governo é muito performático e joga com comunicação para a base eleitoral”. “Ele (Bolsonaro) sabe que os governadores vão continuar com a política de restrições. Mesmo assim, sabendo disso, se sente à vontade para fazer o tensionamento. É nesse movimento que ele consegue agregar e mobilizar a base dele”, ressalta.

Sobre a estratégia citada por Paulo Baía, de que o presidente joga, em ações como essa, certos grupos contra prefeitos e governadores, Torres aponta que em estados como o Ceará, que é governado por um grupo que faz oposição à linha ideológica do bolsonarismo, isso não causa tanto efeito, já que a população já espera um movimento de oposição do Governo do Estado. Para ela, movimentos locais, como o Consórcio Nordeste, dão autonomia aos gestores para manter decretos regionais. 

Confronto

Pesquisador da Universidade Federal do Ceará, Cleyton Monte avalia que o discurso do presidente é direcionado à tentativa de dizer aos brasileiros “que ele quer que o povo trabalhe e quem não quer são os governadores”. 

Segundo o cientista político, é uma estratégia “populista” que procura uma comunicação direta com a população, sem intermediadores. “Ele quer falar diretamente com o povo, e com uma parte da população que está parada em casa. E essas pessoas, muitas delas, não entendem, ou não conseguem dimensionar, que é um problema menor o desemprego, a renda”.

Diante da crise na Saúde, o presidente continua adotando a estratégia iniciada desde que assumiu o Governo, segundo Cleyton. “O discurso de isolamento do Bolsonaro serve a um dispositivo retórico de alguém que está querendo tentar dar uma resposta, mas o sistema não deixa”. O que justificaria, assim, o confronto rotineiro.

Governadores têm respaldo do STF

Parte dos governadores brasileiros garantiu que irá ignorar o decreto presidencial que amplia os serviços essenciais, permitindo o funcionamento de estabelecimentos como salões de beleza e academias de ginástica mesmo diante das medidas restritivas. 

A decisão dos governantes tem respaldo jurídico em entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), ainda de março, que garantia a estados e municípios autonomia para definir as políticas de restrição de circulação em cada ente federativo. 

A decisão final sobre quais atividades devem ser liberadas, portanto, cabe a governadores e prefeitos e não ao presidente, segundo entendimento dos ministros do STF. 
“Os governadores estão albergados por essa decisão do Supremo, tendo a prerrogativa de seguir ou não o que foi determinado pelo decreto presidencial”, explica o doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fabriccio Steindorfer.

Contudo, prossegue ele, a própria decisão do Supremo é passível de questionamentos. A Lei Nacional da Quarentena, aprovada ainda em fevereiro, previa como competência dos governadores a restrição à locomoção dentro do Estado, mas facultava ao Executivo federal a determinação de quais seriam as atividades essenciais. 

“No meu entender, houve uma invasão no mérito da lei (por parte do STF)”, aponta Steindorfer. 

Para tentar reverter a decisão do Supremo, a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu contra a autonomia garantida a entes federativos. 

Ainda sem nenhuma resposta ao recurso, governadores continuam autorizados a contrariar o decreto presidencial. 

“Eles estão abarcados pela decisão. Mas o STF poderia ter encontrado um meio termo, (...) mas, nessa estrutura, é difícil chegar em um equilíbrio. Em uma excepcionalidade, podem ocorrer excessos de um lado e de outro, até porque não há um parâmetro”, conclui o pesquisador.

Desde que se aprofundou a crise na saúde, inúmeras decisões passaram pela Justiça. Sem diálogo com o Governo Federal, estados precisaram do Judiciário para receber respiradores e inspecionar aeroportos durante a pandemia.

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