Covid-19: como as decisões políticas interferem na crise da Saúde

Ações da Presidência da República, alheias à ciência, interferem nos estados que coordenam políticas de saúde em meio a uma pandemia agressiva. Especialistas avaliam impactos de diferentes conduções políticas da crise

Escrito por Wagner Mendes ,
Legenda: Hospitais de campanha, como o da foto, em Santo André (SP), têm sido montados em vários estados
Foto: Foto: AFP

"A gente (no Brasil) está levando uma surra de dez a zero da pandemia”. A declaração é da pesquisadora Ligia Bahia, doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A constatação é pelos altos números de casos confirmados e de mortes por Covid-19 no Brasil. São Paulo e Ceará lideram indesejável ranking de brasileiros infectados, numa situação que é afetada, também, por distintas conduções políticas da crise sanitária no País. 

Para a pesquisadora, o cenário de guerra que assusta gestores públicos e a população de todas as regiões do País poderia ter sido melhor enfrentado desde o início. “Tivemos quatro meses de preparação”, observa a especialista em epidemiologia. Segundo Ligia Bahia, que também é especialista em pneumologia sanitária, já havia a expectativa da comunidade científica de as grandes metrópoles serem as campeãs no número de casos.

> Apesar de ações antecipadas, divergências entre governos são desafio contra Covid-19

Ela cita São Paulo, Fortaleza, Recife, Manaus como exemplos de metrópoles que recebem grande quantidade de turistas internacionais. O vírus veio de fora. “Há uma crise política e sanitária desde o início. Crise entre o mundo da ciência e o (Palácio do) Planalto. Uma tensão muito grande, e que continua. A gente está com quase 13 mil mortes (neste sábado, o Brasil chegou a 15.633 mortes, segundo o último boletim do Ministério da Saúde) e continuam achando que é uma gripezinha”, pontua a pesquisadora. 

O cenário narrado por Ligia Bahia é o já contado diariamente pela imprensa sobre a queda de braço entre o Governo Federal, governadores e a classe científica. De um lado, o presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido), que discorda das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Do outro, os governadores que agem em oposição ao que defende o Planalto.

Instabilidade 

A crise se intensifica enquanto o País enfrenta a segunda queda de ministros da saúde em um intervalo de um mês. O distanciamento político e técnico, entre Brasília e os estados, fica mais óbvio na medida em que a crise sanitária entra em colapso. Diante das dificuldades, cada estado procura encontrar uma saída individual, em muitos casos. 

No Nordeste, por exemplo, o Consórcio Nordeste criou um comitê científico para a definição de modelos para o combate à pandemia na região. Sem um planejamento nacional de enfrentamento ao novo coronavírus, cada estado baixou decretos definindo regras específicas em acordo com os prefeitos. 

Embora o modelo mais duro de isolamento social, o “lockdown” tenha sido adotado primeiro por um estado nordestino, o Maranhão, foi em São Paulo que as primeiras regras de distanciamento foram decretadas. Estado mais populoso, foi lá o primeiro registro de Covid-19 no País. 

Apesar do acerto em relação à velocidade com que o governo estadual implementou as mudanças na rotina da população, a pesquisadora Lorena Barberia, que é doutora em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que a manutenção da atividade industrial em São Paulo, por exemplo, pode não contribuir para a eficiência do plano adotado, em meio a outras regras que entraram em vigor. 

Coordenadora da Rede de Pesquisa Solidária que estuda a Covid-19 no Brasil, na Universidade de São Paulo (USP), a norte-americana ressalta que as regras dos estados têm mudado frequentemente, a cada vencimento de decreto, e não atendem a uma única norma nacional organizada. 

“No Brasil, mesmo entendendo que (as medidas) são radicais, elas são relativamente moderadas. O que é muito preocupante, mesmo que os estados tenham reagido relativamente rápido para introduzir essas medidas. Os estados brasileiros introduziram as medidas ao mesmo tempo que Nova York, proativamente. Mas, ao mesmo tempo, existem muitas mudanças dentro dessas medidas”, cita a pesquisadora. 

Legenda: Consultas por telefone têm sido estratégia adotada por diversos governadores. Na foto, indígenas são atendidos por meio de smartphone
Foto: Foto: AFP

O Ceará, lembra Barberia, é uma das exceções no País, ao ter paralisado o setor industrial em relação ao que não considerou essencial desde março. São Paulo manteve construção civil e indústria, sem restrições. Outro ponto abordado pela pesquisadora é se de fato os decretos estão sendo cumpridos nos Estados. Para ela, há pouca informação das gestões em relação ao que se passa internamente nos estados. 

Vazio nacional

“Não existe uma fonte uniforme para achar onde estão sendo registradas as multas ou algum tipo de plataforma onde conseguimos encontrar evidências de fiscalização. Não há nenhum Estado que está publicando isso”, ressalta. 

Tanto para Ligia Bahia quanto para Lorena Barberia, há um vazio em termos de políticas nacionais para unificar as direções de combate à pandemia. Em razão dessa ausência, a imagem do Brasil, internacionalmente, encontra dificuldades para se firmar com uma das nações que encaram a pandemia de Covid-19 com todas as possibilidades existentes. 

Legenda: No Rio, pessoas aguardam atendimento respeitando a distância recomendada pelas autoridades de saúde
Foto: Foto: AFP

A queda do ex-ministro da Saúde Nelson Teich, na última sexta-feira (15), para o cientista político Cleyton Monte, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é apenas mais um episódio que configura a fragilidade do Ministério da Saúde no País. “Esse Ministério não existia”, situa o professor. Desde a saída do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, “praticamente todas as ações da área ficaram concentradas na Casa Civil ou no Planalto”. Monte diz ainda que “o Ministério passou a ser quase integralmente ocupado por militares”.

Divergências 

A figura de Teich para o Governo e os próprios governadores passou a ser ignorada. A ausência de protagonismo se firmou nos 29 dias em que o médico ficou no cargo. “Até esse papel de passividade tem um limite. Estamos falando de um médico que tem uma carreira e que se tornou motivo de piada no País”. 

As divergências entre Teich, em relação à forma de tratamento dos pacientes de Covid-19, e ao que o presidente Jair Bolsonaro defendia surge como uma das razões mais fortes para essa mudança. As escolhas políticas diante da necessidade do protagonismo da Medicina soam ao mundo com preocupação, segundo o professor. 

“É uma coisa muito estarrecedora quando se compara com o mundo. Você vai ter partidos diferentes, lideranças, que vão deixar isso (diferenças eleitorais) de lado para se concentrar no combate de esforço à crise. Conseguimos perceber isso na França, na Espanha, na Argentina. Líderes com diferentes ideologias, mas agindo de acordo com critérios técnicos”, compara o cientista político.

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