A quem cabe decidir sobre a aplicação da verba do Orçamento?

Em meio a impasse entre Executivo e Legislativo sobre quem detém o poder nos rumos do Orçamento, especialistas discutem os reflexos democráticos da disputa e criticam que debate fuja da real aplicação do dinheiro público

Escrito por Jéssica Welma , jessica.welma@svm.com.br

A execução das emendas parlamentares ao Orçamento 2020 transformou-se em um cabo de guerra em Brasília: de um lado, o Congresso Nacional cobra mais poder para indicar onde as verbas serão aplicadas; do outro, o Governo Federal quer ter a autoridade de decidir se repassa ou não a verba para projetos aprovados pelos congressistas. A quem cabe, então, o poder de decidir sobre a aplicação dos recursos orçamentários?

O Diário do Nordeste entrevistou especialistas sobre o impasse em relação à administração dos recursos do Orçamento da União. Para eles, ainda que o conflito entre poderes seja parte da coexistência deles na democracia brasileira, é necessário ressaltar que a lei orçamentária não é uma sugestão, mas uma norma legal em benefício da população e, pela própria natureza, de obrigatória execução.

As emendas individuais já são impositivas, o que significa que têm preferência. A questão é que, em 2020, os senadores e deputados inseriram na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), pela primeira vez, a impositividade também para as emendas das comissões permanentes e para as do relator do Orçamento, neste ano, o deputado Domingos Neto (PSD). Com a mudança, os congressistas poderiam ainda determinar a ordem de prioridade em que as despesas seriam executadas.

As mudanças não agradaram ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que decidiu vetá-las. Para ele, a aplicação automática do dinheiro, sem interferência do Executivo, é uma forma de engessar o Orçamento.

Poderes

"Não existe o Orçamento do Executivo, do Legislativo e o do Judiciário. O Orçamento é da União, dos estados e municípios. Os três poderes têm atribuições específicas atribuídas dentro de cada esfera. Não se trata de uma discussão sobre um estar 'pegando o dinheiro do outro', não existe isso", afirma o especialista em Direito Constitucional Paulo Henrique Blair de Oliveira, professor da Universidade de Brasília (UnB).

Ele ressalta que em democracias avançadas, como a dos Estados Unidos, todos os gastos previstos no Orçamento são impositivos e precisam ser executados, a não ser que ocorra uma situação de emergência, para as quais também são criados protocolos específicos. No Brasil, esta semana, o Ministério da Saúde pediu ao Congresso a liberação de R$ 5 bilhões do Orçamento para o combate aos impactos do coronavírus, o que deve ser atendido nos próximos dias.

"Isso evita que se estabeleça entre os poderes exatamente uma queda de braço. 'Qual é o meu dinheiro? Qual é o teu?'. O fato de discutirmos isso, especialmente a partir da linguagem usada, prova que não estamos acostumados com a normalidade democrática disso", ressalta Blair.

O argumento também é usado pelo relator do Orçamento, Domingos Neto. "Em praticamente todos os presidencialismos fortes do mundo, o Orçamento é impositivo. O Executivo nunca foi dono do Orçamento. Mesmo autorizativo, ele sempre foi aprovado pelo Congresso", diz.

Toda a polêmica sobre a derrubada dos vetos do presidente, que começou em fevereiro, envolve o poder de decisão sobre o uso de dinheiro do Orçamento.

"Ninguém está discutindo se o Orçamento é impositivo ou não, já o é pela Constituição. O que se está discutindo é o poder de indicação, de prioridade e a limitação de poder a que o Congresso está submetido", pontua Domingos.

Os parlamentares, agora, devem manter o veto, mas pedem, em contrapartida, que também tenham participação na ordem de execução do valor, mesmo que não fique nas mãos do relator.

"Como em toda democracia, o conflito entre poderes é normal, mas, em última análise, prevalece o que diz o Legislativo. Numa democracia, em qualquer problema de interpretação e conflito entre os poderes, deve prevalecer o Legislativo, porque ele faz a lei para todos e para ele próprio, é quem traduz a heterogeneidade presente em toda sociedade. O Executivo tem que aceitar", afirma o professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), Martônio Mont'Alverne.

Na próxima semana, devem ser retomadas as discussões sobre os três projetos do Governo que regulamentam a distribuição dos recursos das emendas parlamentares - uma estratégia do Executivo para chegar a um acordo sobre o montante sob comando do Legislativo.

Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Direito, Raquel Ramos Machado, a crise entre os poderes reflete uma falta de capacidade de gestão e de realização da política.

"Cada um está querendo ter mais poder na gestão de valores públicos, porque, quanto mais essa pessoa tem diretamente em valor público, mais poder ela tem. Eles não estão propriamente preocupados, nesse primeiro momento, com a melhor destinação da verba, mas em manter o poder", pontua Raquel.

Discussão segue sob impasses

A Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso Nacional concluiu na última quarta-feira (11) a votação de propostas do Poder Executivo que alteram leis orçamentárias e regulamentam a execução de emendas parlamentares. Os textos seguem para análise de deputados e senadores em sessão conjunta do Congresso.

O deputado Cacá Leão (PP-BA), relator de polêmica proposta do Poder Executivo sobre o Orçamento Impositivo, já disse que poderá alterar o parecer durante a discussão no Congresso Nacional. 

O relator-geral do Orçamento, deputado Domingos Neto, atribuiu à falta de conhecimento técnico a polêmica em torno das emendas que apresentou. Segundo ele, no total, ao remanejar receitas e despesas a fim de consolidar o Orçamento, o relator-geral precisou fazer emendas que somaram R$ 30,1 bilhões.

Verba de emergência para combater pandemia

O Congresso Nacional deve priorizar, nos próximos dias, a aprovação de uma suplementação orçamentária de R$ 5 bilhões para combater os efeitos do coronavírus no País. A verba foi um pedido do Ministério da Saúde em reunião de emergência com lideranças do Legislativo.

Impactos na discussão do orçamento

A gravidade da situação deixou em segundo plano o embate entre Congresso e Governo pelo controle de uma fatia significativa do Orçamento deste ano. Ainda assim, o relator do Orçamento, Domingos Neto, disse que o episódio é exemplo de como pode funcionar o diálogo entre os poderes.

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