Editorial: O vírus da mentira

Um consenso fácil de se chegar neste cenário global de isolamento social e combate à pandemia, com inevitáveis consequências econômicas, é de que mudanças se seguirão à crise. Há aquelas que se darão em resposta às consequências da doença e de seus efeitos sobre os mercados e a administração pública; e há outras, de ordem bem diversa, mas presumíveis, que dizem respeito às insatisfações das pessoas e instituições com o funcionamento da sociedade. Não se trata aqui das imperfeições, notadas nas mais diversas situações, pois a experiência de se viver sob a ameaça de uma pandemia em tempos globalizados é nova, e não se poderia exigir que tudo operasse com a perfeição do que já foi testado e planejado.

No entanto, há pendências de outros tempos a serem resolvidas e o momento as torna, absolutamente, intoleráveis. É o caso das fake news. A tradução da expressão em inglês como "notícias falsas" não dá conta de explicitar a natureza e os danos deste "vírus da mentira". As "fake news" não poderiam estar distantes das notícias, e não apenas por seu desprezo pelos fatos. A intenção por trás delas é um elemento indispensável para compreendê-las. São conteúdos fraudulentos e, como tal, sua produção é um ato de má-fé; simulam uma natureza informativa enquanto promovem exatamente o oposto: a desinformação.

Tal cultura remonta a práticas antigas, como a da falsificação de documentos com finalidades políticas, alimentada pela cultura de ódio. Entre os séculos XIX e XX foi produzida "Os Protocolos dos Sábios de Sião", texto antissemita que forjava ser a ata de uma reunião conspiratória de lideranças judias para dominação do mundo. Tal indignidade encontra crédulos até hoje e, na Alemanha do entre guerras, alimentou de preconceitos e ideias equivocadas o nascente partido nazista.

Os recursos tecnológicos do presente têm possibilitado que textos igualmente mal-intencionados sejam rapidamente produzidos e compartilhados. Teóricos falaram que o mundo vivia agora a "era da pós-verdade". O quanto estes conteúdos fraudulentos influenciaram os processos democráticos nesta última meia década ainda é algo que se está por precisar. Foi quando se deu o alerta para a necessidade de se combater a prática, sendo exigidas ações dos mais diversos atores sociais.

Enquanto o mundo enfrenta um inimigo comum, precisando como nunca de aliança, baseada na confiança de todos os envolvidos, a produção caluniosa em meio digital segue se proliferando. Espalha discursos anticientíficos, atrapalhando criminosamente orientações das autoridades de Saúde em todos os âmbitos; e busca minar a credibilidade de instituições sérias, fabricando polêmicas, promovendo dissidências e alimentando o caos. Num caso de vida ou morte, como o é o tempo de uma pandemia, as "fake news", seus autores e disseminadores patrocinam a segunda.

Enfrentar este inimigo também não é tarefa simples, mas há caminhos a serem seguidos. Um deles, largamente discutido no exterior, é chamar à responsabilidade as grandes empresas de tecnologia que lhe servem de canal. E há a tarefa de casa do próprio Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário precisam ser vigilantes quanto à prática, e agir de forma a coibi-la dentro s sua competência.