Continuidade da tradição

Uma das riquezas incontestes do Ceará é o conjunto heterogêneo de tradições populares, vivo em manifestações que povoam todo o seu território. A pluralidade de saberes e fazeres, cujos fios ligam geografias e tempos diversos, se materializa em artes, ciências e credos.

São definidores da identidade de um povo. Há uma vasta literatura acerca deste quinhão da cultura cearense, desde clássicos como Leonardo Mota até o de intelectuais ainda em atuação, como Gilmar de Carvalho e Oswald Barroso.

A área, vasta e diversa, é coberta por políticas públicas sob responsabilidade da Secretaria da Cultura do Estado (Secult). No âmbito municipal, muitos municípios já reconheceram sua importância para o imaginário e, em alguns casos, também para a economia. Desde 2006, o Ceará dispõe de legislação que regula o registro dos "Tesouros Vivos da Cultura".

Pioneira no Brasil, a lei foi concebida para valorizar e dar suporte aos fazeres e saberes de homens e mulheres com reconhecida maestria na cultura tradicional popular. Há prefeituras que contam com programas análogos de cobertura, claro, mais restrita.

O que define um mestre não é tão somente a perícia em seu ofício, mas sua condição de matriz e difusor de tradições de caráter simbólico, dotadas de história e da identidade e, por isso, importante para estas duas dimensões sociais. Aquilo que sabem e fazem aprenderam de mestres que vieram antes deles, transformaram estes saberes a partir de suas próprias vivências e agora o repassam às novas gerações.

Desde 2017, o número de contemplados pelo programa - entre mestres, grupos e comunidades tradicionais - passou dos originais 60 para 80. Ainda que se reconheça o rigor da seleção, a quantidade é apenas uma fração do que o Estado conta em termos de cultura popular. Os nomes são selecionados pela Coordenadoria de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secult; as propostas, no entanto, são feitas pela sociedade civil.

Os mestres da cultura contemplados passam a dispor de reconhecimento institucional e de um subsídio mensal fixado no valor de um salário mínimo. O recurso é pago como auxílio para a manutenção de suas atividades e para garantir a transmissão de seus saberes e fazeres. Ajuda oportuna, mas que necessita de complemento e, dada a riqueza do fenômeno, de ser ampliada.

O momento atual inspira cuidados especiais nesta categoria tão importante para a identidade cultural do Estado. Ainda que não seja regra, a maior parte dos mestres é formada por pessoas idosas, que figuram no grupo de risco de infecção da Covid-19. Além disso, não poucas manifestações pautam sua transmissão de saber numa relação física, de contato, de toque.

A performance está presente e, portanto, aprende-se, também, com o corpo. Há, por fim, a questão econômica. A relação de alguns fazeres tradicionais com a economia é bastante tênue; há mesmo casos que ela é inexistente, como nas práticas do sagrado das ordens de penitentes.

A crise impõe desafios inadiáveis. Os artistas, como se sabe, precisam de atenção dada a especificidade de suas atuações; e também exigem atenção especial às práticas culturais num sentido mais amplo. Cuida-se, assim, não apenas de pessoas, mas da matéria do imaginário do qual o Ceará é feito.