Parece que o relógio da vida tem um trato com a cantora Simone todo final de ano. Quando chega dezembro, a voz dela não só invade casas e lojas pelo Brasil, como passa dias e dias ecoando na minha mente, o tempo inteiro me questionando: “Então, é Natal! E o que você fez”? Como esse é um período de avaliação pra mim, costumo levar a pergunta da cantora muito a sério.
Reflito sobre tudo um pouco: sobre mim, os afetos, os amores, as paixões, os trabalhos, as conquistas, a política, a economia, o meio ambiente, Deus, o universo, o que comi, o que li, quem eu conheci, quem me emocionou, as músicas que ouvi… Mas entra ano e sai ano, uma mesma questão sempre paira sobre a minha cabeça: O Natal, data tão especial pra tanta gente, é também a época mais triste do ano para muitas pessoas LGBTQIAP+.
Por se tratar de uma data onde as famílias costumam se reunir ao redor de uma mesa farta, trocar presentes, abraçar e declarar o amor, é custoso lembrar que grande parte da população LGBTQIAP+ não pode viver esse momento, seja porque foram expulsas pela violência doméstica decorrente do preconceito ou por uma decisão própria de sair de casa numa tentativa de se libertar das opressões.
A nossa casa costuma ser o primeiro lugar pelo qual sofremos algum tipo de discriminação e mesmo depois de crescidos, quando já adultos, são inúmeras as situações constrangedoras.
Quantos de nós não já apresentamos nossos companheiros ou companheiras como amigos na noite de Natal? Quantos de nós tivemos que escolher entre a nossa família e a pessoa que amamos nesta data? Quantos de nós passou a vida ouvindo piadas dos tios e primos sobre seu jeito de falar, vestir ou agir? Quantos de nós já foi silenciado ou cutucado pela mãe para “mudar de postura” na frente dos avós?
São 2022 anos passados e ainda é comum ver tantas famílias religiosas, que pregam o amor incondicional de Deus, mas que são incapazes de amar seus próprios filhos, sobrinhos, primos, pais, tios. Seguimos ainda com a necessidade de discutir o lugar da empatia, do respeito e do amor ao próximo.
Se buscamos constantemente uma maneira de evoluirmos como seres humanos, qual o problema em exercer o princípio da empatia e da generosidade? Onde há dificuldade em respeitar o outro? Aqui não falo de aceitação, porque não acredito que ninguém tenha obrigação de me aceitar. Tampouco uso tolerância, porque é cruel pensar que alguém precisa consentir a minha existência, como se estivesse acima de nós. Falo de respeito mesmo. Onde ele fica?
Respeito fortalece os sentimentos de amor, de afeto, abre espaços de oportunidades, de acolhimento, de segurança, de qualidade de vida, de coragem.
Talvez assim tivéssemos menos lugares vazios à mesa na noite de Natal, talvez as pessoas não se sentissem na obrigação de formar novos laços fraternos com outras pessoas ou não se restringissem à solidão da data.
O que nos falta é pensar de forma sustentável. Sustentabilidade no sentido mais literal possível. Crescer, transformar e evoluir são ações que necessitam de conhecimento, clareza e consciência. Não se muda o futuro sem olhar para os erros do passado e tentar construir soluções no presente que possam ser colhidas no futuro. Viver em um ambiente sustentável é ter responsabilidade sobre os atos, é reconhecer as dificuldades e traçar estratégias que garantam o bem estar da humanidade em futuras gerações.
Nós somos responsáveis pelo futuro da humanidade e aqui não se trata de pensar no macro, no mundo, em metas sociais difíceis de alcançar. Estou falando de mudar agora pequenas coisas, talvez o Natal da sua família. Fazer uma ligação convidado seu parente LGBTQIAP+ para estar presente, reconhecê-lo enquanto indivíduo, ofertar um abraço a quem há tempos não sabe o que é isso, convidar o companheiro ou companheira LGBTQIAP+, pais e mães saírem dos armários que também os aprisionam.
Somos todos responsáveis pelo futuro, pelo ano que chegará em breve, pelo legado que vamos deixar, pelas próximas gerações, mas também por algo que podemos mudar amanhã ou hoje, neste Natal ou em qualquer outro dia além dele.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora