Constrangedor ao extremo, Borat 2 traz choque de realidade no jogo entre humor e repulsa

Novo filme do personagem de Sacha Baron Cohen, “Borat: Fita de Cinema Seguinte” foi lançado no Amazon Prime na última sexta (23)

Legenda: Como destaque, a conexão entre as atuações de Maria Bakalova e Sacha Baron Cohen
Foto: divulgação

Quando o ator Sacha Baron Cohen deu vida ao personagem de Borat em 2006, muito do mundo era de diferente. No entanto, talvez engane-se quem acredita em uma mudança sempre para melhor se, na verdade, as críticas apresentadas na nova produção são praticamente as mesmas e, pasme, mais fortes e evidentes.

É exatamente essa a grande questão do novo filme protagonizado pelo artista britânico. Depois de 14 anos do primeiro, “Borat: Fita de Cinema Seguinte” é o novo longa do tal "segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão" e traz uma premissa polêmica: na história, Borat é o escolhido para entregar um macaco de presente a Michael Pence com o intuito de aproximar o país de onde veio de Donald Trump, atual presidente norte-americano.

Desde a saída de Borat do Cazaquistão, já que, segundo o novo roteiro, ele havia passado os últimos anos em regime de escravidão, o humor ácido e extremamente constrangedor proposto pelo longa se torna manifesto. Desde o aparecimento de nomes como o de Bolsonaro e Kim Jong-Un ao citar líderes mundiais em um certo "Clube dos Tiranos" até a descoberta de uma filha mulher, Borat explora o recurso da risada pela identificação de uma realidade que, de acordo com a construção do longa, é sombria e imersa nos mais diversos preconceitos existentes ao redor do mundo. Além disso, não perde tempo ao fazer críticas contundentes ao comando de Trump disfarçadas como apoio. 

Como definido pelo próprio Cohen nas entrevistas de divulgação, Borat é um homem "misógino, racista e antissemita" que, anteriormente, ainda lá em 2006, chegou a servir como espécie de espelho para a revelação de muitos dos preconceitos internos enraizados na sociedade estadunidense.

A diferença, então, estaria justamente no momento atual, no qual o orgulho ao espalhar ideias ultra conservadoras parece ter se tornado a verdadeira palavra de ordem para muitos por aí. E Borat usa disso novamente. Faz "piada" com a questão do muro nos Estados Unidos, com o aprisionamento de crianças mexicanas e com as histórias de assédio que cercam o então presidente do País. 

Do arco principal do filme, sem spoilers, a reviravolta acontece quando Borat vê a impossibilidade de entregar o macaco a Pence. Entre o transporte do animal e a chegada aos EUA, é a filha de Borat, a jovem Tutar, que passa a ser o novo presente ao homem mais próximo de Trump. Assim, para completar a missão oficial para a qual foi designado, o protagonista utiliza dos disfarces mais esdrúxulos para se misturar entre as pessoas.

O que aparece como resultado disso são as constantes falas machistas -e assustadoras- e até mesmo xenófobas, que deixam claro como a sociedade parece ter passado por uma espécie de regressão inexplicável. 

Legenda: Os disfarces de Borat ao longo do filme também são alguns dos motivos das risadas certeiras
Foto: divulgação

A realidade do absurdo

Falando da estrutura do novo filme, não poderia ser mais certeiro utilizar o formato de mockumentary (falso documentário) já feito antes. No meio de encenações e interações com pessoas reais, o que salta com clareza aos olhos do espectador são os diálogos malucos entre Borat e Tutar, encontrando eco nas críticas veladas aos preceitos religiosos ainda mantidos no século 21, capazes de tolerar a pedofilia e o incesto, ou à construção de uma elite patriarcal cada dia mais escancarada.

O destaque, inclusive, fica para a atuação perfeita da atriz búlgara Maria Bakalova, como a filha recém-descoberta, que tem um timing perfeito para as situações vivenciadas pelas mulheres até hoje e propostas no longa. O ápice, quase impossível de não citar, está na interação dela com Rudy Giuliani, atual advogado de Trump que surge no longa em uma cena real e extremamente comprometedora.

Ouça o podcast 'Diz, mulher', com Gabriela Dourado:

Nesse caminho, não dá pra deixar de citar o trabalho feito na abordagem da crise do novo coronavírus na história do filme, gravado na época do início da explosão de casos de Covid-19. Borat chega a interagir com homens crentes na tese da fabricação do "vírus chinês", que questionam o uso das máscaras de proteção, fazem uma ode surreal ao ódio pelos democratas e ainda parecem apoiar Trump mesmo com sinais claros da completa inabilidade do mesmo.

As risadas, claro, são quase instantâneas por serem a pura expressão do absurdo, algo capaz de gerar identificação no vivenciado por todos nós em meio ao dia a dia da confusão que tem se tornado o ano de 2020. É por aí que surge a cristalização de como os ideiais violentos parecem ter controlado e adoecido junto de uma sociedade já corroída.

No geral, “Borat: Fita de Cinema Seguinte” consegue arrancar as risadas de quem assiste de forma desconfortável, ao evidenciar que, no fim das contas, não existe motivo nenhum para encontrar a mínima "graça" no que enxergamos quando estamos fora do espectro de retrocesso. Quando o de pior aparece em cena -fique atento às menções de nazismo que enojam fortemente qualquer pessoa sensata- o sentimento mais evidente é o de medo e, em seguida, o de questionamento: afinal de contas, o que o futuro nos reserva é mais de tudo isso?

Pelo visto, enquanto o negacionismo for tão incisivo como o presenciado nessa história, tempos complicados ainda estarão por vir.