Para muitos, a lista de metas de 2023 já está pronta! Há mais de 20 anos também escrevo minhas metas para o ano vindouro. Na verdade, sou adepta de listas para quase tudo, desde ninharias cotidianas a sonhos, talvez, inalcançáveis. Sou neurodivergente (papo para um outro dia) e o uso estratégico de planejamentos e metas me reorganiza, serve como um pequeno norte no labirinto interno em que tendo a me perder.
Pela intimidade com as listas e com a Psicologia sei que, apesar de toda a empolgação e empenho ao elaborarmos nossas metas para o novo ano, é normal descumprimos nossas promessas tão logo o ano novo desponta. Contudo, diferente do que tendemos a pensar, não há absolutamente nada de vergonhoso nisto.
Há um hiato, esperado, entre o que planejamos e o que de fato realizaremos. Há um nome para esse vazio entre o que consideramos como um bem a ser feito e nossa ação tosca, muitas vezes, em sentido contrário ao que pretendíamos: acrasia.
Independente do dicionário, ao buscar a palavra “acrasia”, você encontrará alguma definição que aponte para a mesma conclusão: a ação de alguém que, mesmo sabendo o que é o melhor a ser feito, ainda assim faz outra coisa. É fácil adjetivar essa condição, que todos passamos em algum momento, como “fraqueza” ou ausência de “força de vontade” - mas isso pode ser um pouco simplista.
Há milênios, filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, cada um a seu modo, fizeram formulações sobre a acrasia: Como seria possível alguém agir diferente daquilo que, racionalmente, já havia decidido o que era o melhor para si?
O que os grandes pensadores se questionavam, na Grécia Antiga, é ponto de interrogação corriqueiro em nossos dias, nos mais diversos exemplos cotidianos, por exemplo: por que alguém decide que o melhor para si é um casamento monogâmico, assume publicamente este compromisso e, ainda assim, continua a trair? Por que alguém decide que o melhor para si é ser menos consumista, mas continua a estourar o cartão de crédito? Por que apesar da consciência e da promessa para diminuir o consumo de açúcar, algumas pessoas ignoram a própria promessa?
Esta nossa incoerência interna, a acrasia, como dito, foi estudada há milênios por filósofos, mas foi somente no século XX, com o desenvolvimento da psicologia e das neurociências, que o fenômeno da acrasia pôde, enfim, ser mais bem compreendido. É um assunto um pouco complexo, mas peço licença para um brevíssimo resumo, apenas para um melhor entendimento.
Nós possuímos traços que são relativamente constantes, sólidos, traços de nossa personalidade que, talvez, já fossem perceptíveis desde a adolescência e, alguns, até mesmo na infância. Entretanto, apesar dessa constância que nos habita, é consenso, nas mais diversas correntes da Psicologia, que nós não somos tão constantes como pensamos, não somos seres “cristalizados”: há um dinamismo na nossa forma de ser e estar no mundo, somos impactados pelo ambiente, por nossas emoções, pelas circunstâncias as quais somos submetidos, pelas contingências momentâneas.
A compreensão que somos seres porosos, uns mais que outros, ao que nos circunda, ainda que momentaneamente, significa entender que o estado atual - quando planejamos nossos objetivos e metas - sofrerá alterações no futuro. A motivação com a qual escrevemos nossa “lista de ano novo” foi escrita sob um estado de humor específico, em um contexto específico e, provavelmente, não restará intacta – nem mesmo a curto prazo.
Para além das nossas flutuações internas, esperadas, ao longo do ano, muitas vezes, nosso planejamento é falho, não pondera possíveis eventualidades, ignora que não somos seres 100% racionais e superestima a tal “força de vontade”.
É interessante que possamos compreender que não há nada de sagrado e 100% racional nas metas que escolhemos para o nosso novo ano. As metas servem como um norte para aquele momento no qual escrevemos, o que não significa que não sofrerão alterações.
Algumas de nossas metas se tornarão impossíveis de serem atingidas (por uma eventualidade imprevista), outras serão simplesmente esquecidas (por terem se tornado desimportante para nós), outras metas talvez nunca devessem ter estado em nossas listas…
A acrasia pode ser avassaladora, trazendo grande sofrimento psíquico, sentimento de culpa, impotência e, somar essa dor acrática à interpretação simplista de que o não cumprimento de metas de ano novo se resume à falta de força de vontade, é, no mínimo, devastador moralmente. Desconsiderar a nossa acrasia é, acima de tudo, ignorância, uma vez que, com isso, estamos rejeitando a própria natureza humana.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora