“A crônica não é um gênero literário maior”, sentenciava o mestre Antônio Cândido, sociólogo, ensaísta e crítico literário. “Graças a deus”, acrescentava, “porque assim ela fica mais perto de nós”. O valor da crônica residiria exatamente na sua despretensão, na sua ligeireza, no seu coloquialismo, na sua mais absoluta sem-cerimônia.
“Em lugar de oferecer um lugar excelso, uma revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”, dizia o mestre.
Por definição, a crônica seria efêmera, passageira, transitória, momentânea. Escrita para o jornal, tenderia a envelhecer com a edição do dia, caducar com a notícia velha, esclerosar com a informação de trasanteontem.
Porém, as boas crônicas jamais envelhecem. Se alguém duvida disso, que visite o saborosíssimo “Portal da crônica brasileira” (www.cronicabrasileira.org.br), editado por um dos mais extraordinários representantes contemporâneos do gênero, o colega jornalista Humberto Werneck.
O portal, que conta com a curadoria de Elvia Bezerra e Rosângela Gurgel, surgiu de uma seleção de mais de 25 mil recortes de jornais e revistas, oriundos dos acervos do Instituto Moreira Salles e da Fundação Casa de Rui Barbosa, a maior parte datada das décadas de 1950 e 1960, período de apogeu da crônica na imprensa nacional.
Por enquanto, quinze autores já estão lá — e mais de três mil textos. Textos primorosos, diga-se. De Antônio Maria, Antônio Torres, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Ivan Lessa, João do Rio, José Carlos de Oliveira, Jurandir Ferreira, Lima Barreto, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e, claro, o maior de todos eles, Rubem Braga. Todos devidamente acompanhados de informações sobre a data e o local da publicação original, bem como da possibilidade de visualização dos respectivos recortes.
Virão mais autores, avisa Werneck, e outras crônicas de autoria dos nomes já incorporados ao acervo do portal, que passa por constante evolução e atualização. Numa aba específica, “Artes da crônica”, adicionada recentemente, é possível ler textos sobre a natureza e as características do gênero, assinados por craques como Ivan Ângelo, Joaquim Ferreira dos Santos, Davi Arrigucci, Luiz Rufatto e o próprio mestre Antônio Cândido, de onde pesquei a citação lá de cima.
Na seção “Rés do chão”, Werneck faz pequenas coletâneas temáticas, como “Cardápios da memória”, que reúne crônicas sobre comida; “O cronista vai ao cinema”, sobre filmes de época; ou “Doce lar, ou nem tanto”, sobre casas, próprias ou alheias. Também é possível navegar por grandes temas, como amor, morte, literatura, costumes, política, amizade e futebol.
Mas, às vezes, o bom mesmo é trafegar a esmo, para descobrir preciosidades escondidas, a exemplo de Clarice escrevendo sobre a arte de perfumar-se; Otto sobre o que é ser brasileiro; Rachel sobre a relação com os vizinhos; Sabino sobre o dia em que Braga, à falta de assunto, numa hora de aperto, pediu-lhe uma crônica emprestada.
“É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias da crônica”, volto a citar aqui Antônio Cândido, quando ele lembra ser totalmente falsa a ideia de que as coisas sérias seriam necessariamente graves, pesadas, e que, portanto, a leveza significaria superficialidade.
“Aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer nossa visão das coisas”, ensina Cândido. Nada mais atual e necessário, nestes tempos tão soturnos, em que o desânimo impera e tentam sequestrar até mesmo nossa capacidade de nos emocionarmos ante a beleza e de sorrir das deliciosas trivialidades do mundo.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.