Projeto São Francisco : os muitos erros que o levam ao caos anunciado

Engenheiro eletrônico José Carlos Braga, especialista em energias renováveis e conhecedor, de cor e salteado, do empreendimento, diz que ele está na UTI.

Especialista em energias renováveis e conhecedor de todos os aspectos do Projeto São Francisco de Integração de Bacias, o engenheiro eletrônico José Carlos Braga elaborou para esta coluna um texto técnico no qual fala sobre" o caos" que está envolvendo esse empreendimento, incluindo “canais, adutoras, reservatórios, túneis, estações de bombeamento etc”.

Consultor técnico da empresa cearense Uruquê Energias Renováveis, cujo projeto de geração de 2,65 GW de energia solar em Jaguaretama e Umari está na fase de parecer de acesso junto à ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), José Carlos Braga trabalhou no Ministério da Integração Nacional ao tempo da elaboração do Projeto São Francisco de Integração de Bacias.

Seu texto foi elaborado com base em matéria veiculada aqui na semana passada, abordando a situação do Projeto São Francisco, a construção do Canal do Salgado, a duplicação das bombas do Canal Norte e a duplicação dos sifões do Eixão das Águas.  

O engenheiro José Carlos Braga escreveu o que se segue:

“Sem a solução dessas patologias e outras providências estruturais no empreendimento, seriam inexequíveis duplicações, construções ou mesmo agregações de outros equipamentos, pois na verdade o “paciente” está nos corredores da UTI, e como diz o adágio popular, “não se deve gastar vela com defunto ruim”.

“Tendo-se em conta que o poder público, aí incluindo o federal e o estadual, não tem como bancar cerca de US$ 1 bilhão, quase que de imediato, para dar vitalidade ao projeto, além de muitos outros tantos para mantê-lo cumprindo seu objetivo indefinidamente, propomos uma saída via PMI/PPP em nível federal, com lastro nas energias renováveis tão abundantes no Nordeste, e cujo modelo vimos apresentando há mais de seis anos diretamente à “Corte”, sem que haja a mínima ressonância e sem qualquer explicação racional ou plausível, pelo menos à luz do dia.

“Neste terceiro governo Lula diria que é inevitável promover uma “segunda versão do PISF” com urgência, e desta vez trazendo a iniciativa privada a compartilhar dos bilionários investimentos, numa combinação de água com energia verde.

“Não nos esqueçamos das secas recorrentes que virão maltratando a população sertaneja, do agronegócio carente de água, do fosfato cearense para fertilizantes, do Hub do Pecém com as energias fotovoltaicas, eólicas e do hidrogênio/amônia verdes, enquanto esse grande projeto de transposição de águas do São Francisco, tão necessário a essas demandas, encontra-se à míngua e prestes a tornar-se um verdadeiro “elefante branco”, a exemplo de outros tantos equipamentos no Brasil.

“Abaixo, para seu conhecimento, um breve resumo de levantamento das principais patologias do PISF nos dias de hoje, extraídas das práticas de campo. Esta é apenas a ponta do Iceberg pois muitos outros dados mais amiúde não requerem ser descritos neste momento.

“1- Bombeamento: Apesar de ter sido previsto que cada bomba pudesse bombear determinada quantidade na captação, diversos erros de projeto redundaram em capacidades de bombeamento que podem chegar, em determinadas situações, a 1/3 da capacidade projetada quando o nível de água de sucção está muito baixo. 

“2- Operação & Manutenção (O&M):  Esta atividade está prevista no plano de gestão, para ocorrer sob responsabilidade da operadora oficial, a Codevasf. Todavia, parte das atividades de O&M ainda está a cargo de contratos com o MDR. Esta situação gera conflitos de interesses com profundo impacto na funcionalidade do projeto, como a não sincronia das informações do Canal Leste com o Canal Norte. Alguns itens, que poderiam ser de uso comum, como limpeza de faixa, supressão vegetal e conservação de estradas de acesso, não o são, obrigando a realização ‘forçada’ de aditivos sem coerência aos contratos originais, com perda da obrigatoriedade de exaurimento de tarefas, inferindo que a ‘culpa pela não execução nunca é de quem a executa’. Como os recursos dos contratos são dimensionados por equipes diferentes com entendimentos conflitantes, os parâmetros adotados para dimensionamento de recursos, geralmente redundam na disponibilidade de recursos inúteis e na ausência de outros indispensáveis. Como resultado, abre-se uma avenida para a inexecução de atividades vitais, as quais vão se acumulando e crescendo como um “câncer”, prestes a eclodir e inviabilizar a funcionalidade do equipamento. Assim como ‘um cachorro com dois donos apartados morre de fome’ pois cada um acha que o outro já o alimentou, o mesmo ocorre com o PISF, que, optando por um arcabouço hierárquico confuso, deixa de identificar e responsabilizar tomadas de decisões inadequadas, mas hoje tem-se a impressão de que a intenção é exatamente essa.

“3- Alimentação elétrica e interligação Digital Trecho V: Devido a erros de planejamento, a rede de distribuição do Canal Leste perdeu boa parte de sua infraestrutura de distribuição elétrica. Apesar de o projeto ter sido todo implantado, incluindo a cobertura de conexão digital, as casas de máquinas, construídas para as estruturas de controle, foram totalmente depredadas, incluindo furto dos equipamentos instalados. Deste modo, não é possível comandar essas estruturas para trabalhar remotamente, causando dependência de mão de obra braçal para isto acontecer, apesar destas contarem com extensos recursos automatizados.

“4- Alimentação elétrica e interligação Digital Trecho II: O Canal Norte é dividido em dois trechos, Trecho I de Cabrobó a Jati, onde fica a derivação para o CAC, e o Trecho II de Jati até o Reservatório de Caiçara, de onde sai o Ramal do Apodi e de onde deveria sair o Ramal do Salgado. Apesar de o projeto de distribuição do Trecho I estar completo e implantado, com todas as suas estruturas de controle interligadas e funcionais, a rede de distribuição do Trecho II nunca foi sequer proposta, ou tampouco projetada. No Trecho II não há sequer a expectativa de como a interligação elétrica e lógica será realizada, não sendo possível o sistema alimentar eletricamente essas estruturas, nem o monitoramento remoto, causando dependência de mão de obra braçal para operar, apesar de contarem com extensos recursos automatizados.

“5- Jati: Devido a erros de planejamento e projeto, houve um acidente na barragem destruindo completamente toda a estrutura de controle de passagem de fluxo para o Trecho II, apesar de estar funcionando a Estrutura de Controle do CAC. Para seguir em frente o caminho das águas, foi necessário fazer uma adaptação no vertedouro do reservatório de Jati para que fosse liberada água através dele. Assim, o único modo de liberar água para depois de Jati é manter o reservatório cheio. Essa condição, apesar de ter criado uma ‘linda’ cachoeira, causa sérios problemas de segurança dos equipamentos que precisam operar sob estresse contínuo. Para se reestabelecer a condição inicial, faz-se necessária a realização da reconstrução completa da estrutura de controle destruída no acidente.

“6- Atalho: Devido a erros de planejamento e projeto identificados anteriormente, foi feita a completa revisão da estrutura de controle da barragem do Atalho, que era do mesmo modelo da de Jati. Para isso, foram realizadas adaptações nos sistemas de adução, permitindo que o ‘Caminho das Águas’ não fosse interrompido, uma vez que os equipamentos em questão não demonstram e nem garantem padrão de segurança rastreável, capaz de permitir sua recondução à condição funcional. 

“7- Dique Negreiros: Devido a fissuras na rocha matriz do alicerce da barragem de Negreiros, este reservatório sempre apresentou um nível muito alto de percolação, desde o início de seu enchimento. Em dezembro de 2019 o acompanhamento de segurança da barragem entrou em alerta nível máximo. Depois de muita discussão, acompanhamento, tratativas de reversão do problema, concluiu-se que seria necessária uma intervenção muito profunda para se conter o vazamento. Segundo a avaliação dos especialistas, as intervenções realizadas afastam a possibilidade de colapso da barragem, mas, sem a realização de outras abordagens complementares, a perda de água permanecerá nos atuais níveis, que podem ser muito altos quando o reservatório está cheio.

“8- Remanescentes: Como a maioria dos bens no PISF, muitas estruturas foram projetadas sem uma conexão factual com os seus efetivos objetivos. Por isso, grande parte das demandas não foram atendidas e muitas das que o foram se degradaram bastante antes de entrar em operação. Exemplos icônicos como Jati e Atalho, que se tornaram obsoletos antes mesmo de entrar em funcionamento, são de conhecimento público. Fora os incidentes de grande impacto, há um grande número de pequenos problemas que passam por falta de componentes ou degradação acelerada em outros, que, se ainda não tiveram o condão de causar incidentes graves, estão seriamente comprometidos com isso.

“9- CCO: Com um projeto desenvolvido há cerca de duas décadas, o Centro de Controle de Operações deveria ser capaz de colher informações de disponibilidade, qualidade e vazão de todos os reservatórios, tomar decisões operacionais com base em demandas e históricos acumulados e ainda ser capaz de operar as estruturas remotamente. Todavia, devido a fatores como falta de gestão concisa, falta de foco, demora em implantar tecnologias tornando-as obsoletas, falta de infraestrutura intergeracional na maioria das estruturas auxiliares, falta de dependências físicas adequadas, foi montado um pequeno núcleo, quase experimental, onde foram instalados todos os equipamentos que se permitiam ser integrados, redundando em cerca de metade da capacidade operacional prevista. Para completar a integração do empreendimento, seria necessária a construção de um prédio estrategicamente localizado, bem como a contratação de ‘up grades’ dos atuais equipamentos já instalados. Já existem projetos e orçamentos com este fim, mas, durante o governo passado, nunca foram seriamente avaliados, nem técnica nem economicamente, visando a sua consecução.

“10- Segurança patrimonial: Por falta de um gerenciamento programático, há várias abordagens em curso, que passam por contratos de vigilância desarmada, monitoramento por câmeras ou o simples abandono ao ‘Deus dará’ em parte das estruturas, redundando, em muitos casos, na depredação destas, como já citado anteriormente. Tanto o MDR como a Codevasf vêm tentando implementar projetos de atendimento de segurança através de monitoramento remoto, mas sem um gerenciamento conciso, sem alimentação elétrica e digital na maioria das estruturas, sem um plano de ação estratégico para gerenciamento de protocolo de atuação em caso de crise. Diante disto, como qualquer projeto pode ter chance de prosperar? Esta situação contribui para todo tipo de vandalismo, incluindo furto de água e até das pedras dos escoramentos de canais. Nesse interim, excetuando as estações de bombeamento, os demais ativos remotos contarão apenas com a ‘misericórdia divina’ para garantir a sua integridade.

“11- Duplicação do Bombeamento: A fim de prover a correção de muitas das deficiências apresentadas, bem como aumento da oferta e de reserva técnica operacional, foi pensado desde os primórdios uma ampliação/duplicação do bombeamento, isto é, implantação de bombas, tubulações e oferta de energia suficientes para duplicar a capacidade atual, praticamente imediata à sua consecução. Há notícias de que estudos iniciais para determinar os recursos necessários para esta realização foram desenvolvidos. Todavia, com a permanência das incertezas geradas pela ausência de um Programa de Financiamento Público/Privado suficiente robusto, não há como ‘a ideia sair do Papel’. Os estudos não podem ser avaliados, nem discutidos, nem tramitados. Este tipo de abordagem gerou a maioria das patologias descritas aqui, pois as ações gerenciais do PISF sempre foram reativas, tomadas ao calor da emoção em meio a crises. Parece que pensar e ou planejar ‘fora da caixa’ causa urticária em alguns segmentos do nosso governo, seja na ‘direita’ ou na ‘esquerda’. Projetos e ou abordagens acabam sendo estudados somente após que decisões intempestivas, certas ou erradas, já tenham sido tomadas. Foi assim com os assuntos fundiários, com os programas ambientais, com as remoções de interferências, com a execução de projetos, sempre às custas de atrasos e das necessidades de profundos aditivos nos contratos, para permitir conclusões, na maioria das vezes, somente parciais dos serviços originalmente previstos.”