Desde que Jair Bolsonaro perdeu as eleições, no dia 30 de outubro de 2022, que o país assiste a manifestações públicas de eleitores do candidato derrotado, manifestações que vão desde o inconformismo com o resultado, até manifestações que beiram ao ridículo, a histeria, ao delírio, ao patético. Ao lado de manifestações criminosas, que atentam contra o direito de ir e vir das pessoas, como o bloqueios de estradas, ataques violentos contra caminhoneiros, intimidações de todo tipo, inclusive com a ocorrência de disparos de arma de fogo contra viaturas da Polícia Rodoviária Federal que, curiosamente, foi totalmente conivente quando do início dos protestos contra uma eleição que foi considerada por todos os analistas independentes, inclusive por um extemporâneo relatório das Forças Armadas, como tendo sido limpa, ficamos perplexos com milhares de pessoas comuns, muitas delas com idade elevada, se dispondo a ficar dias inteiros debaixo de sol e chuva, acampados em barracas precárias, em frente a quarteis do Exército, a clamar por um intervenção militar, a clamar por um golpe contra a democracia brasileira.
É muito claro que, muitos desses protestos, são financiados por grandes grupos empresariais e por lideranças políticas, dada a estrutura de apoio montada: barracas, carne para churrasco em quantidade, cervejas, refrigerantes, salgadinhos. A maioria dos próprios caminhões envolvidos no fechamento de rodovias pertencem a empresas do setor logístico e de transportes, o que deixa claro que os tais protestos estão longe de ser espontâneos. Eles foram planejados antes mesmo da derrota, continuam sendo incentivados por lideranças políticas bolsonaristas, pelos filhos do próprio presidente e alimentadas pelo silêncio cúmplice do mandatário federal, que nunca reconheceu publicamente a sua derrota.
Os empresários do agronegócio, das grandes empresas que se beneficiaram com contratos com o governo, além daqueles ligados a atividades ilegais, notadamente na Amazônia: garimpo em terras indígenas, extração ilegal de madeira, contrabando, tráfico de drogas, empreendimentos em terras da União, em unidades de preservação, estão sustentando financeiramente esses protestos, embora poucos mostrem a sua cara nas manifestações.
Mas realmente o que estarrece são as pessoas comuns, que não estão recebendo nada desses esquemas de financiamento do crime e da ilegalidade, pessoas que nos últimos dias, diante da cada vez mais clara impossibilidade de conseguirem o que querem, diante do visível esvaziamento e fracasso dos protestos, têm se queixado, até com o presidente da República, de que estão fazendo suas necessidades fisiológicas nas ruas, que têm perdido o emprego, que têm sido abandonados pelas famílias, que até as mães os têm chamado de otários, aliás “patriotários” virou o adjetivo mais usado para qualificá-los. Para um cientista social um fenômeno como esse deve interessar e preocupar.
O que faz com que milhares de pessoas se lancem numa aventura golpista, cometam crimes e contravenções penais, se exponham as intempéries e a violência, deixem seus afazeres, suas famílias, coloquem sua saúde em risco, pela exposição ao sol, ao calor, à chuva, ao vento, aos alagamentos, ficando em beiras de rodovias e calçadas, podendo ser atropelados ou atingidos em episódios de confronto?
Mais do que o curioso e o ridículo, esse fenômeno nos chama atenção e nos leva a refletir sobre qual a realidade em que essas pessoas estão vivendo, como elas podem abandonar sua vida real (seu emprego, sua família, seus amigos, seus estudos) para mergulharem numa espécie de vida paralela, buscando a todo custo, contrariando os dados mais comezinhos da realidade, alcançarem uma improvável reversão do resultado eleitoral. Ilusão que nem o mandatário derrotado tem mais, vide sua depressão e seu medo pânico de que todos os esqueletos que enterrou nos armários da República (ele que um dia disse que quem gosta de osso é cachorro, se referindo as ossadas dos corpos de vítimas da ditadura encontradas enterradas clandestinamente no cemitério de Perus-SP) venham à tona levando-o para a prisão.
Creio que só compreenderemos essas pessoas desesperadas, tendo crises de histeria, falando de uma volta do comunismo (quando ele nunca passou por aqui), do fechamento de igrejas evangélicas, por um futuro presidente que sancionou a lei que criou o dia do evangélico, do perigo do país se tornar uma Nicarágua, uma Cuba, uma Venezuela, que até mesmo pela simples dimensão territorial do país e a complexidade de sua sociedade é impossível, se atentarmos para o papel que as novas mídias digitais, que as redes sociais, que o uso dos celulares e computadores domésticos têm na conformação de narrativas sobre o real. A realidade é para os humanos aquilo que eles conseguem perceber, decodificar e significar entre os dados vastos e complexos do real.
A realidade humana é sempre uma narrativa sintética sobre o que se passa em torno das pessoas, sobre o que acontece na natureza e na sociedade. A realidade consumida pelos humanos é hoje produzida e veiculada por grandes centrais distribuidoras de informação e significação. Para nós humanos o mundo e tudo o que nele acontece tem que possuir um significado, só que, cada vez mais, recebemos significações, sentidos, para os eventos, já prontos, oferecidos através de mensagens estrategicamente pensadas para serem acreditadas e repassadas sem uma filtragem crítica, sem que tenham nascido do próprio contato da pessoa com o real.
Aqueles que, como muitos bolsonaristas, estão aprisionados na verdadeira bolha digital produzida intencionalmente pelo aparato de propaganda capitaneado pelo que se chamou de gabinete do ódio, consomem todos os dias informações e narrativas, a maioria delas mentirosas, arquitetadas propositadamente para impactar certos grupos sociais, fornecendo a elas leituras completamente distorcidas da realidade. Como mostra ampla reportagem do jornalista Breno Pires, publicado na edição desse mês da revista Piauí, intitulada “O show do Jair: como o PT enfrentou a milícia digital bolsonarista”, a realidade paralela que mobiliza essas pessoas, a ponto de alguém tentar parar um caminhão a unha, não nasce de um mal funcionamento ou de um mal uso das redes sociais, mas nasce do uso deliberado e organizado desses meios de comunicação para criarem narrativas mentirosas, caluniosas e fantasiosas sobre qualquer um que for julgado como adversário.
O que a milícia digital bolsonarista faz no Brasil (e nomeá-la de milícia chama atenção para o caráter criminoso do que fazem: caluniar, injuriar, utilizar incorretamente os meios de comunicação, veiculando preconceitos e incitando a violência, disseminando o ódio, atentando contra o Estado democrático de direito) é o mesmo que as milícias digitais da extrema-direita fazem em todo o mundo. Eles aprenderam com Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, que uma mentira replicada e repetida muitas vezes se transforma em uma verdade. A proximidade da propaganda bolsonarista com a propaganda nazifascista não é mera coincidência, só que potencializada e sofisticada pelas tecnologias digitais e a transmissão em rede.
Torna-se muito difícil conversar e argumentar com um bolsonarista porque para que um diálogo entre dois seres humanos ocorra é preciso que eles partilhem uma visão comum acerca do que constitui minimamente a realidade. Conversar com alguns bolsonaristas é o mesmo que conversar com marcianos ou lunáticos, pois eles vivem num mundo em que não encontramos nenhum ponto de contato com a nossa visão da realidade. Eles internalizaram como verdade todas as fake news espalhadas pela rede de desinformação da extrema-direita, que é globalizada e que atua cotidianamente, não apenas em época de eleições.
A blogosfera da extrema-direita tem o poder de chegar ao celular e ao computador de cada um e convencer as pessoas das mais descaradas teorias da conspiração, até de criar na sociedade uma recusa a se vacinar, a consumir dados produtos, até a acreditar que a terra é plana, que forças cósmicas ou profecias religiosas os virão salvar do satanás petista e até que Lula morreu e um sósia de dez dedos assumiu o seu lugar e anda vagando por aí.
É inegável que essas narrativas funcionam porque elas se conectam a desejos (como o de ver Lula morto ou Alexandre de Moraes preso), porque elas partilham dos mesmos interesses de quem as recebe (empresário que não quer pagar imposto, nem cumprir leis trabalhistas; grileiro, madeireiro e caçador ilegais que querem continuar a delinquir; militar que não quer perder a mamata do empego público; homem e mulher que querem um Estado confessional), porque eles veiculam a mesma visão fascistóide do mundo, que muitos nem sabem que portam em suas subjetividades (desapreço pela democracia, pelo contraditório, aspiração por uma verdade única, visão autoritária do poder e do governo, visão hierárquica da sociedade, racismo, homofobia, misoginia, machismo, desapreço aos direitos humanos, criminalização da política).
As redes sociais têm que ser urgentemente reguladas e regulamentadas pelos Estados porque elas se tornaram um perigo real para as democracias, mas creio que elas se tornaram uma ameaça a própria sanidade das pessoas, a medida que têm o poder de distorcer completamente a relação das pessoas com o real, de suspender a construção de narrativas sobre a realidade a partir de evidências, de experiências, de acontecimentos do mundo concreto, para se viver num mundo e numa realidade completamente simulados, montados a base de recursos tecnológicos de texto e imagem, imaginados e programados por técnicos e formuladores do mundo digital.
Se os bolsonaristas passaram a ser conhecidos como gado é porque apresentam comportamento de rebanho, comportamento de manada, se deixando levar por uma sofisticada rede de produção de versões sobre a realidade que não tem o mínimo apoio no real. Talvez o fato de muitos deles serem religiosos, alguns fanáticos, explique o fato de terem a tendência de aceitarem como verdadeiro um mundo imaginário, mitos, seres e objetos fantasmáticos como mamadeiras de piroca, mansões dos filhos do Lula (quando não conseguem ver ou fingem que não veem as mansões dos filhos e ex-mulheres de Bolsonaro), sósia de dez dedos, etc.
Muitos deles sequer percebem que são massa de manobra nas mãos de políticos e empresários que sabem muito bem qual é a realidade e que só estão ali os utilizando para defenderem seus interesses privados e particulares. Eles, em privado, devem rir muito do patriota do caminhão, dos chorosos clamores no muro das lamentações dos quarteis, do solitário manifestante a bater a cabeça no portão da caserna, do homem a marchar para lá e para cá com uma bandeira do Brasil no ombro, da senhora ajoelhada aos pés de dois jovens recrutas perplexos, entre o constrangimento e o riso, do manifestante lançado fora de um quartel como um bólido. Cenas que dá para rir e para chorar, mas que deviam nos fazer pensar!