Equivaler o que não é equivalente ou a arte de passar pano para o fascismo

Há muito tempo, setores importantes da mídia nacional, seja para se mostrarem pretensamente equidistantes em relação as duas opções políticas que aparecem em destaque em todas as pesquisas eleitorais para as eleições de presidente da República, seja para advogar a necessidade do que seria uma terceira via, que rompesse com o que chamam de polarização, ou o que consideram duas posições ditas extremistas, vêm se notabilizando por equivaler o que não pode ser considerado equivalente, por comparar o incomparável, por colocarem em pé de igualdade posicionamentos e posturas diametralmente opostas. 

Essa postura termina por normalizar, por tornar equiparável e aceitável aquelas posturas que deveriam sofrer condenação geral, por uma das instâncias fundamentais para a manutenção e fortalecimento da democracia entre nós, que são os meios de comunicação. Se não fosse por outros motivos, que essa imprensa se posicionasse pelo menos levando em conta as diferenças de tratamento dado aos próprios jornalistas e as empresas de comunicação por parte dos dois campos políticos em disputa.

De um lado temos um conjunto de forças políticas que congregam partidos políticos identificados como de esquerda, encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores e partidos e figuras políticas identificados como de centro, como o próprio pré-candidato à vice-presidência da República, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, pelo Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB), que foi a força política adversária do PT, em pelo menos quatro eleições presidenciais. 

Forças políticas que foram centrais para a construção e fortalecimento da democracia no país, desde o período da chamada Nova República. Somente com o equivocado questionamento da vitória de Dilma Rousseff, em 2014, por parte do candidato derrotado, Aécio Neves, e o embarque do partido na aventura golpista de 2016, foi que o PSDB começou a fazer parte do processo que fragilizou a democracia entre nós e que terminou por levar a extrema-direita ao poder, em 2018. O PT tem a democracia como valor desde a sua fundação, quando surgiu questionando o modelo soviético de socialismo e as chamadas ditaduras do proletariado.

No entanto, parte da grande mídia brasileira equipara o PT e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, que ganhou e perdeu várias eleições e jamais questionou o processo democrático, que não aceitou nem conversar sobre o movimento que se fazia no sentido de que alterasse a Constituição e concorresse a um terceiro mandato, quando tinha popularidade acima dos 80%, a Jair Bolsonaro e as forças de direita e extrema-direita que constituem e apoiam o seu governo, que além de já terem participado do golpe anterior contra a democracia, do impeachment sem crime de responsabilidade da presidenta Dilma, ameaça toda hora o processo democrático, desqualifica e põem em questão toda semana o processo eleitoral, e ameaça de não haver eleições caso o Tribunal Superior Eleitoral não atenda a um rol de exigências descabidas, que só visam tumultuar e inviabilizar a realização das eleições, forças que no dia 7 de setembro de 2021 convocou e estimulou seus seguidores a realizarem um movimento golpistas, com a possível invasão do Supremo Tribunal Federal.

O esporte preferido de muitos jornalistas é chamar Lula e Bolsonaro de radicais, como se o radicalismo dos dois significassem a mesma coisa. Enquanto um quer atingir as raízes das desigualdades e das injustiças sociais no país, o outro quer destruir pela raiz qualquer possibilidade de justiça social no país, prometendo explicitamente acabar com qualquer ativismo político que seja contrário as suas ideias fascistas e reacionárias. Enquanto um prega a esperança, a paz, o amor, a solidariedade, o outro defende a violência, o ódio, a raiva, a discriminação, o preconceito, a intolerância.

A má fé e a desonestidade é a marca de posturas que embora não assumam a visceral antipatia pelo petismo e pelo lulismo, terminam por passar pano para as coisas mais absurdas cometidas pelo bolsonarismo a pretexto de que seriam uma resposta extremada a um outro extremismo, que assim justificaria o que o outro lado comete. Como pode haver equivalência quando apenas um dos lados da disputa vem perpetrando atos de violência, enquanto o outro vem sendo vítima desses atos. 

As manchetes de alguns jornais ao noticiarem o assassinato do guarda municipal e dirigente petista Marcelo Arruda por um fanático bolsonarista, na cidade de Foz de Iguaçu, na madrugada desse sábado passado, chegam a ser chocantes. Estamos a caminho da naturalização de um crime político bárbaro, tal como fez o vice-presidente da República, ou mesmo da transformação do assassino em vítima e da vítima em agressor como podemos assistir estarrecidos quando da declaração da delegada que seria responsável pelo inquérito. O presidente da República, além de hora nenhuma pronunciar sequer o nome da vítima ou prestar solidariedade a seus familiares, aproveitou a ocasião para divulgar uma mensagem, em redes sociais, datada de 2018, em que acusa a esquerda de ser violenta, quando o que se tem visto é ataques com drones, com bombas caseiras, espancamentos e assassinatos de militantes e ativistas políticos perpetrados por militantes bolsonaristas.

Como se pode tomar como equivalente um candidato que convoca que se mate a petralhada e um candidato que só fala de matar a fome das pessoas. Como se pode considerar semelhantes um candidato que conversa com todos os setores da sociedade e um outro que só conversa com seus seguidores no cercadinho ou através das lives de quinta-feira, dizendo que eles sabem o que fazer para evitar a vitória dos inimigos nas próximas eleições. Enquanto um lado da disputa tem adversários, o outro tem inimigos e prega a devida eliminação deles pelas armas.

A irresponsabilidade daqueles que vem tratando como semelhante o completamente dessemelhante, é a mesma daqueles da escolha difícil em 2018. Trata-se nesse momento de saber quem efetivamente é defensor da democracia e do Estado de direito, quem é realmente a favor da liberdade de expressão, de consciência, de ir e vir, por que temos em um dos lados da disputa eleitoral aqueles que pregam a liberdade apenas para os seus, para quem pensa e age como eles, para quem tem a sua opção política, ou seja, liberdade para dominar e oprimir as demais forças políticas, usando para isso, de forma muito clara, a formação de milícias armadas, de grupos paramilitares. Basta a absurda associação entre a liberdade e andar armado para que saibamos a quem devemos nos opor nesse momento da vida nacional. 

É totalmente legítimo não ser petista, não concordar com as ideias e programas do PT, não simpatizar com Lula e não votar nele, mas comparar o PT e Lula a Bolsonaro e ao bolsonarismo, é prestar um total desserviço ao país e à sociedade brasileira, pois se está apoiando indiretamente um projeto fascista que acabará, inclusive, com a liberdade de discordar e pensar diferente.

Nos últimos dias se vê em dados meios de comunicação a ideia de que os dois lados da disputa devem moderar a retórica, que estaria muito acalorada. Novamente é estar assemelhando o completamente diferente. Lula deve desagradar porque defende de forma acalorada os trabalhadores, os pobres e faz críticas as elites brasileiras, ao empresariado por sua falta absoluta de consciência social, por pensarem apenas em seus lucros e dividendos. A voz de Lula incomoda aqueles órgãos de imprensa claramente identificados com os valores das elites brasileiras, que compartilham, em grande medida, das mesmas formas de ver e pensar o mundo, a economia, a política da ampla maioria dos setores empresariais brasileiros. Lula foi uma voz que tentaram calar por atirar no rosto de muitos o absurdo da miséria e da desigualdade social num país cheio de riquezas e potencialidades. Mas isso é muito diferente da retórica bélica de Bolsonaro, que incentiva o preconceito, a intolerância, a violência física, que se utiliza de mentiras e calunias, para desqualificar o que chama de inimigos, disseminando fantasias de complôs e de conluios comunistas, socialistas, vermelhos, etc.

Não podemos aceitar e devemos protestar contra uma cobertura jornalística que se torna cúmplice do solapamento progressivo das instituições e das liberdades democráticas no país. Não podemos deixar de lembrar que alguns desses órgãos de imprensa promoveram e foram coniventes com outros momentos de prevalência de Estados de exceção, de ditaduras no país e não podemos assistir de braços cruzados, sem chamar à responsabilidade, aqueles que vem sendo permissivos com o fascismo, que ameaça subverter as instituições democráticas no país. Estamos diante de uma liderança política que vem achincalhando as instituições, que debocha até da concessão de honrarias e que menospreza os princípios básicos da República, como: a separação e a harmonia entre os poderes, a transparência e a lisura na gestão pública, a impessoalidade nas decisões, o respeito a liturgia do cargo, etc. Não se pode aceitar que se continue equiparando e tornando equivalentes forças democráticas e forças fascistas, democratas e golpistas, agredidos e agressores. Se os democratas morrem, morrem com eles a democracia!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.