Realizou-se entre os dias 15 e 19 de junho, no Centro de Convenções, na cidade do Natal, a primeira edição da Feira Nordestina da Agricultura Familiar, que reuniu cerca de dez mil pessoas. O evento promoveu a venda e degustação dos produtos da agricultura familiar e da economia solidária e constou de festival gastronômico, palestras, seminários, encontros e atrações culturais. Tendo como slogan “A grande festa da colheita”, o evento simboliza a força desse setor na economia nordestina, apesar de todos os obstáculos que esse tipo de atividade tem enfrentado, historicamente, nesse espaço do país.
Podemos dizer que a realização da Fenafes tem um significado não somente econômico, mas um importante significado político, pois representa e explicita a resistência da pequena produção familiar, dos pequenos produtores rurais, para conseguirem realizar sua produção, no interior de um quadro de monopólio da propriedade da terra, de prevalência do latifúndio, muitas vezes improdutivo, de dificuldade de acesso a terra por parte dos camponeses, durante toda a história dessa área do país.
A violência no meio rural, na área que hoje se denomina Nordeste, é uma marca que atravessa toda a nossa história. A luta pelo acesso a terra foi motivo para muito conflitos e causadora de inúmeras mortes daqueles que não pertenciam as elites proprietárias. A pequena produção de alimentos, voltada para a subsistência ou, no máximo, para a venda de um pequeno excedente nas próprias áreas próximas a produção, teve, desde o período colonial, que se desenvolver nas fímbrias da grande lavoura destinada a exportação, ou mesmo nas franjas dos latifúndios, nas terras menos férteis, nas terras devolutas, nas áreas mais íngremes, de difícil acesso ou em áreas ainda não ocupadas pela elite branca.
Desde o período colonial, ela foi uma atividade exercida, majoritariamente, por homens e mulheres livres e pobres, muitos deles indígenas cristianizados, negros fugidos da escravização ou mestiços que moravam como agregados dos grandes proprietários ou que habitavam áreas distantes e isoladas dos chamados centros de civilização. O abastecimento de alimentos foi um problema, desde os primeiros tempos da colonização portuguesa, sendo motivo de muitas determinações vindas diretamente do poder real.
A pequena lavoura teve sempre que se haver com a precariedade do acesso a terra por parte de seus produtores, estando marcada pela intermitência e pelos deslocamentos constantes das áreas produtoras, seguindo os passos do nomadismo de seus promotores. A pequena produção agrícola, ou mesmo a criação de animais de pequeno porte, além da caça, da pesca e da coleta, foi a base da subsistência da maior parte da população brasileira, num largo período de sua história. Herdada, em grande medida, das populações originárias, essa economia centrada na produção para consumo imediato, não favorecia a produção de excedentes necessários para abastecer aquela parcela da população que, sendo proprietária, não produzia diretamente seus alimentos, se dedicando as atividades para a exportação.
A progressiva implantação de uma economia de mercado entre nós também passou a exigir a produção de excedentes comercializáveis que esse regime de produção familiar não contemplava. Esse modelo de produção que guardava muitos traços de sua origem comunitária (ainda hoje esses traços tendem a diferenciar a agricultura familiar e é a base da chamada economia solidária), pois fizera parte da vida das comunidades indígenas, quilombolas e camponesas, teve que se bater e entrar em conflito com a lógica privatista, individualista da economia de mercado capitalista.
Como sabemos, a agricultura familiar, como o próprio nome indicia, envolvia e envolve o trabalho coletivo de toda a família, além de contar com a ajuda de vizinhos, de parentes, em dados momentos do ano. Os chamados mutirões envolviam a prática da ajuda mútua, do partilhar das atividades produtivas e envolviam dimensões lúdicas, festivas e de reforço da solidariedade grupal. Portanto, a agricultura familiar significou, e ainda significa, muitas vezes, a resistência de estruturas e relações comunitárias, de práticas e instituições coletivas diante da tendência a prevalência das relações individualistas e da dissolução dos laços comunitários trazidos pelas relações capitalistas.
A própria luta por permanecer ou conquistar a terra é motivo da ação coletiva, do estabelecimento de alianças, de associações, do ajuntamento desses deserdados da terra em torno de lideranças carismáticas e religiosas, como no caso de Canudos ou do Caldeirão, da constituição de entidades como as ligas camponeses, visando romper com as formas precárias de acesso a terra oferecidas por aqueles que as monopolizavam, quase sempre em troca do estabelecimento de relações de trabalho marcadas pela brutal exploração e pela absoluta falta de direitos.
A pequena lavoura resistiu pela ação dos indígenas, dos quilombolas, dos posseiros, mas também dos moradores, dos parceiros e dos meeiros que, ao invés de se internarem em áreas distantes e remotas como aqueles, habitavam e serviam de mão-de-obra para a grande propriedade. Para esses o pequeno roçado era uma dádiva, um favor que o proprietário fazia em troca dos serviços de toda a família em suas próprias lavouras, sem nada receber monetariamente em troca. Essa pequena roça, muitas vezes localizada nas piores terras, devia garantir o sustento da família e, em caso de desentendimento com o dono da terra, podia ser simplesmente confiscada sem que seus plantadores tivessem nem mesmo o direito de reclamar.
Os pequenos produtores da área que hoje se chama Nordeste, sempre tiveram que lutar com um outro grande inimigo, quando se trata de levar adiante a sua pequena lavoura: as secas. Para isso também desenvolveram estratégias que se tornaram verdadeiros conhecimentos técnicos que hoje beneficiam o que se chama de convivência com o semiárido. Se o homem e a mulher pobre tinham que resistir para sobreviverem durante as secas, a pequena produção resistiu com eles, foi sua parceira nessa tarefa hercúlea. Produzir nas vazantes, nas áreas ainda úmidas do próprio leito dos rios secos; migrar para áreas de serras, para os chamados brejos, áreas mais úmidas e de clima mais ameno e aí fazer suas roças; cultivar, muitas vezes, nesgas de terras férteis em meio a pedras e carrascais foram algumas das soluções encontradas.
Na falta de terras próprias para cultivar, plantar no próprio terreiro de suas moradas ou em seus arredores; aproveitar as faixas de terras disponíveis na beira das estradas, destinadas a posterior ampliação da rodovia; tomar emprestado um pequeno pedaço de terra de alguém que não a esteja utilizando foram outros recursos utilizados. A pequena lavoura voltada para a produção de alimentos, bem como a criação de pequenos animais, inclusive o cultivo de espécies como a abelha, visando a alimentação cotidiana, teve que resistir assim como o fez os seus agentes, os homens e mulheres pobres, ao regime de monopólio da terra e da monocultura para a exportação, que foi a base da colonização e continua sendo a atividade prevalecente na área mais fértil do Nordeste: a Zona da Mata, bem como vem se apossando das áreas de cerrado na Bahia e sul do Piauí.
A pequena produção raramente contou com qualquer incentivo ou política pública por parte do Estado brasileiro. Dominado pelos grandes proprietários de terra, esse Estado sempre privilegiou a grande lavoura (e, muitas vezes, apenas alguns de seus setores) no que tange as políticas de investimento, de preço, fiscal, tributária ou cambial. Políticas de incentivo a produção e a comercialização nunca se voltaram para esse setor, com a exceção dos governos petistas (não é mera coincidência que a primeira Feira Nordestina da Agricultura Familiar tenha sido sediada na capital de um estado governado pelo Partido dos Trabalhadores, pela governadora Fátima Bezerra) que perceberam a importância estratégica desse setor para o combate a fome, para o próprio combate a pobreza, que atinge a maioria daqueles que milita nesse setor da economia, além da contribuição que pode dar para a estabilização dos preços dos alimentos e para a adoção de práticas agrícolas que preservem o meio ambiente (já que que a grande lavoura, marcada pelo uso excessivo de agrotóxicos e fertilizantes é um fator de degradação e poluição ambiental). A produção agroecológica praticamente se dá de forma exclusiva nas atividades da agricultura familiar e representa um modelo de produção agrícola inovador e indispensável para o combate a grave crise ambiental vivida pelo planeta.
Ameaçada de extinção, perseguida, tangida para áreas cada vez mais distantes, periféricas, alocada nas áreas menos férteis, nas franjas e nos interstícios da grande propriedade, ocupando os minifúndios, muitos deles inviabilizados pelo tamanho, pela localização e pela qualidade inferior do solo, a agricultura familiar, a pequena produção de produtos alimentícios, resistiu e resiste, assim como o fizeram os homens e mulheres que nela trabalha. Sem merecer a atenção das autoridades, esquecida e abandonada na hora da definição de políticas econômicas, a pequena produção resiste, apesar dos ataques frontais que vem recebendo do atual governo, que extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário, acabou com o Programa de Aquisição de Alimentos e com o plano safra da agricultura familiar. Dominado pelo agronegócio, um dos setores que lhe dá um decisivo apoio, o governo de extrema-direita destruiu todas as políticas públicas voltadas para esse setor, que, mais uma vez, tem que demonstrar toda sua capacidade de resiliência e resistência diante das adversidades, para continuar nos fornecendo o pão nosso de cada dia.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.