O espetáculo deprimente protagonizado pelos três advogados que se apresentaram, na tribuna do Supremo Tribunal Federal, para fazer a defesa dos primeiros golpistas flagrados promovendo a baderna e a depredação dos prédios públicos, sede dos três poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023, acendeu a luz vermelha acerca do tipo de formação que está sendo oferecida nos cursos superiores de Direito, no país. Deve-se lembrar que quem fez a defesa do primeiro réu, Aécio Lúcio da Costa, foi um desembargador aposentado, isso significa que Sebastião dos Reis Coelho, que usou a tribuna para atacar ministros do Supremo e fazer sua defesa prévia no processo que o Conselho Nacional de Justiça abriu contra ele, por incitar atos golpistas contra o Estado democrático de direito que, em tese, deveria defender, não só é alguém que foi aprovado no teste que a Ordem dos Advogados do Brasil submete os graduados em Direito, para permitir ou não que exerçam a profissão - o que já é um indício de que a própria entidade que representa os advogados desconfia da formação acadêmica por eles recebida -, como é alguém que passou num concurso para a magistratura e foi promovido a condição de julgador de segunda instância, revendo as sentenças prolatadas pelos juízes de piso.
Mas nada foi pior do que o espetáculo oferecido pelo advogado criminalista Hery Kattwinkel que, em tese, deveria subir à tribuna para oferecer defesa técnica do réu Thiago de Assis Mathar, em relação aos crimes em que estava denunciado pelo Ministério Público Federal. O que se viu, no entanto, foi um discurso meramente ideológico, em defesa dos “patriotas”, sem praticamente se referir aos crimes que eram imputados a seu cliente. Como observou o Ministro Alexandre de Moraes, seu discurso parecia estar dirigido a fazer autopromoção, marketing pessoal, possivelmente pensando em arrebanhar o gado para votar em sua candidatura a vereador, no ano que vem, já que estava filiado ao partido Solidariedade. Advogado que não defendeu o cliente presente, mas sim o seu mito que possivelmente será um réu no futuro. O momento realmente patético foi quando ele, além de confundir as obras O Pequeno Príncipe de Antoine Saint-Exupéry, com O Príncipe de Nicolau Maquiavel, atribuiu ao filósofo italiano enunciado que nunca foi dito textualmente por ele, embora a vulgata de internet a ele o atribua: “os fins justificam os meios”. Fica patente, no caso, a ausência de formação filosófica, histórica e ética daqueles que concluem os cursos de Direito no Brasil.
A formação em direito foi vulgarizada de tal forma no país, que o Brasil diploma, a cada ano, mais advogados do que todos os países do mundo juntos, segundo o historiador Fernando Horta. O Direito, estando na base da formação do próprio Estado nacional, sendo, junto com a Medicina, os únicos cursos superiores ofertados no país, por quase um século, isso fez com que a maior parte dos cargos públicos, os cargos considerados de governo, tenham a formação jurídica como um pré-requisito. A maioria dos concursos públicos para acessar uma carreira nos três níveis de governo exigem conhecimentos no campo jurídico e legal, isso não só estimula que muitos se dirijam aos cursos de Direito, como incentivou a abertura indiscriminada de cursos superiores na área, a maioria deles em universidades privadas, que cobram mensalidades muito altas e lucrativas, devido à própria ideia de que o curso, por vir sendo oferecido desde o período Imperial, fornecendo já na graduação um título de doutor, ofertaria status e uma espécie de distinção a quem recebe um diploma. Some-se a isso a valorização do bacharelismo no país e a presença do patrimonialismo e do nepotismo no poder Judiciário, que faz com que as carreiras jurídicas passem de pais para filhos, muitas vezes sem que as novas gerações tenham o preparo adequado para assumir as funções que assumem graças ao prestígio político e interna corporis de seus progenitores.
Os currículos dos cursos de Direito foram sendo empobrecidos no que tange à oferta de uma formação erudita, de uma formação humanística mais ampla, com o conhecimentos nos campos da filosofia, da sociologia, da história, da antropologia, mesmo no campo da formação literária e linguística indispensável para profissionais que vão lidar, fundamentalmente, com a linguagem, em realizar a leitura e redação de textos e códigos, sendo reduzidos a uma formação baseada na memorização de códigos e leis, na preparação para a redação de textos e pareceres nos moldes daqueles que vão ser exigidos nas provas da OAB e nos concursos para ingressar no meio jurídico. Além disso, muitos cursos de Direito são ideologicamente conservadores, até pelo fato de que a maioria daqueles que acessam esses cursos provém das camadas sociais privilegiadas, muitos possuem uma visão elitista e buscam o curso para obter o que seria uma distinção. São cursos em que uma boa parte da clientela é masculina, vinda também das escolas particulares, muitos sendo aprovados no ensino fundamental e médio pelo simples fato de estarem bancando as altas somas que custam as mensalidades dessas instituições. Muitos filhos de papai, sem nenhuma vocação para a carreira jurídica, fazem o curso para ter uma formação universitária, se empenhando muito pouco em estudar, em universidades privadas que são verdadeiras fábricas de diplomas. São muitos os formados em Direito que sequer conseguem ser aprovados no teste da OAB, tendo que exercer outras profissões ou se candidatar a concursos em outras carreiras em que seu diploma de advogado vai pesar na hora da prova de currículo.
Os cursos de Direito são daqueles preferidos pelas universidades e faculdades privadas, pois eles não exigem a construção de laboratórios ou a compra de equipamentos sofisticados, permite a cobrança de mensalidades caras e podem ser ministrados por uma maioria de professores que sequer têm a docência como a atividade principal de suas vidas. Muitos dos professores são profissionais atuando no Judiciário ou em outras carreiras do campo jurídico, não tendo, a maioria, sequer formação pedagógica adequada. A docência é para muitos um bico, para completar a remuneração, não merecendo a dedicação que deveria. Muitas aulas não passam de longas e monótonas perorações acerca dos códigos e das leis, quando não depoimentos memorialísticos sobre as experiências que o causídico possa ter experimentado em sua carreira. A compra do Vade Mecum, logo nas primeiras semanas de aula, parece garantir que todas as duvidas e problemas que possam surgir durante o curso, podem ser resolvidos mediante a consulta a esse manual. Aliás, a produção de manuais para o ensino do Direito constitui, também, um dos mercados editoriais mais promissores, no País. A proliferação de livros que comentam os códigos, incentivam que a formação se dê completamente centrada nesse tipo de exercício hermenêutico, que faz do graduando em Direito uma pessoa que praticamente passa a sofrer uma alienação em relação a uma formação muito mais complexa que deveria receber, já que vai atuar numa realidade histórica, social e cultural que deveria conhecer, vai lidar com seres humanos, com emoções, sentimentos, subjetividades e valores que deveriam ser objeto de conhecimento e debate em sala de aula.
Os juris simulados e a frequentação como estagiários de julgamentos através do júri popular e escritórios de advocacia, também fazem da formação uma espécie de pragmática, sem a necessária preparação intelectual e erudita para o seu melhor exercício. A ideia de que o Direito é uma ciência social aplicada favoreceu, cada vez mais, que a parte da ciência social seja preterida em favor de uma aplicação precoce, uma espécie de treinamento sem uma formação intelectual adequada. Isso se revela na taxa muito baixa de alunos e professores na área do Direito que se dedicam à pesquisa acadêmica, à iniciação científica. Se comparada a outras áreas das humanidades e mesmo das ciências sociais aplicadas, a demanda por bolsas de pesquisa em agências como o CNPq vinda da área do Direito é quase insignificante. A pesquisa acadêmica aparece como uma espécie de perda de tempo para alguém que busca a profissionalização precoce. Não se pode negligenciar o fato de que, embora tenha sido uma profissão que passou, por tudo o que já expomos, por um processo de proletarização, encarnada pelos chamados advogados de porta de cadeia, aqueles que ficam a procurar clientes no momento de maior aflição das pessoas, a profissão ainda é muito procurada por aqueles que acham que ela dá acesso não só a status social, mas a muito dinheiro, ao enriquecimento rápido. Talvez seja essa ilusão que faz muitas pessoas pagarem mensalidades escorchantes para cursarem cursos e faculdades de baixa qualidade. A maioria dos cursos de Direito das universidades privadas têm avaliações de sofrível a ruim quando da realização da avaliação por parte do INEP. É urgente que a OAB assuma a direção de um movimento pela melhoria da formação na área do Direito, com a mudança dos currículos, com a alteração no perfil dos professores, com o incentivo à pesquisa e com a pressão para que os cursos deficitários e precários sejam efetivamente fechados pelo Ministério da Educação. Algo deve ser feito para que não tenhamos que presenciar cenas deprimentes como as que assistimos essa semana, cenas que depõe contra não só a advocacia, mas contra a própria formação universitária no país.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.