As "coca-colas". Assim eram apelidadas as moças de Fortaleza que se divertiam dançando e bebendo o famoso refrigerante, um dos antigos símbolos dos EUA, com soldados americanos no Estoril, na Praia de Iracema, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45). A Capital sediava o projeto de uma base militar dos EUA instalada no bairro que é conhecido, hoje, como Pici. Desse episódio histórico, surge uma geração de cearenses que passou a admirar a cultura americana em uma ex-província antes devotada aos valores franceses. A eleição do novo ocupante da Casa Branca na próxima terça-feira (3) reanima o interesse pelos rumos da maior economia do mundo, pois, assim como foi no passado, as novas guerras e batalhas dos "ianques" podem interferir na história de territórios estratégicos como o Nordeste.
"Depois de muita pressão norte-americana, resistência das forças armadas brasileiras e longa negociação, o governo Vargas autorizou a instalação das bases militares, construídas no Amapá, em Belém, em São Luís, em Fortaleza, em Natal, no Recife e em Salvador", narra André Luiz Vieira de Campos, doutor em história, professor da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sobre a presença americana no Norte e Nordeste na Segunda Guerra.
O Departamento de Estado dos EUA temia que os alemães invadissem o Nordeste brasileiro a partir de Dakar ou do arquipélago dos Açores. Caso isto acontecesse, os nazistas poderiam ameaçar o canal do Panamá e o Caribe.
"O pânico que esta possibilidade causou entre os militares norte-americanos pode ser avaliado pelos diversos planos preventivos elaborados pelo exército daquele país; o mais mirabolante deles previa a ocupação do Nordeste brasileiro - com ou sem o consentimento de Vargas - por uma força de 100 mil homens".
A exemplo do contexto atual da disputa entre o presidente Donald Trump e Joe Biden, havia, na época das "coca-colas", uma preocupação sanitária como hoje existe com a pandemia da Covid-19.
"Antes mesmo da assinatura formal do acordo militar com os EUA autorizando a instalação das bases, duas equipes de médicos militares percorreram o Nordeste e o Norte do País, analisando as condições sanitárias daquelas regiões e sugerindo políticas de saúde que preservassem os soldados das endemias locais. Os relatórios produzidos por estas equipes retratam um quadro impressionante: malária, febre tifoide, disenterias, doenças venéreas, esquistossomose, peste bubônica, parasitas intestinais, tuberculose, varíola, tracoma, hanseníase, desnutrição e alto índice de mortalidade infantil estavam entre os problemas de saúde mais sérios identificados. Entretanto, estes estudos não foram feitos para orientar políticas de saúde para a população civil, mas para detectar quais doenças seriam ameaçadoras para as tropas norte-americanas no Brasil", relata Campos.
Guerra com a China
Depois de 75 anos do fim da Segunda Guerra, a história se renova: nos últimos quatro anos, Trump adotou uma retórica beligerante, decretou uma guerra comercial com a China, ameaçou a Venezuela, a Coreia do Norte, tirou os EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) em plena pandemia, apoiou a eleição de governantes conservadores pelo mundo e tratou a América Latina como um "quintal", como definiu o presidente recém-eleito da Bolívia, o esquerdista Luis Arce, que vê em uma possível vitória de Joe Biden uma "oportunidade para conversar".
Para o Brasil do presidente Jair Bolsonaro, ter um progressista como Biden no comando da Casa Branca, como projetam as últimas pesquisas, pode ser um cenário negativo.
"Se o Biden ganhar, para o governo brasileiro, é catastrófico. Desde em 2019, o Brasil investiu apenas em um país nas suas relações, somente nos EUA. A gente não tem outro parceiro de fato importante, que a gente tenha cultivado. Nossos parceiros mais importantes se afastaram do Brasil: é o caso da Argentina, dos países europeus, a relação com a China é de desconfiança, de distância, de frieza", analisa o professor de Política Internacional da Universidade Veiga de Almeida e comentarista na GloboNews, o carioca Tanguy Baghdadi.
Imigração
A menos de oito horas de voo para os EUA (Fortaleza-Miami), o Ceará não tem mais base militar para embarques e desembarques de aviões de guerra dos EUA, como na primeira metade da década de 1940, mas o Aeroporto de Fortaleza (Pinto Martins, aviador cearense de Camocim, foi o piloto pioneiro no trecho Nova York-Rio de Janeiro, em 1923) é hoje estratégico para o setor turístico, permitindo aos cearenses viagens diretas para os EUA, sem o transtorno do passado de "descer" para Brasília ou para o Sudeste em escalas e conexões desnecessárias.
Se na época das "coca-colas", o sonho de um jovem da elite era estudar Medicina ou Direito no Recife ou no Rio de Janeiro, hoje o horizonte é bem maior: o intercâmbio nos EUA está mais fácil, acessível e permite experiências mais enriquecedoras e até a possibilidade de imigração. Seja Trump ou Biden que vença na próxima terça, essa tendência deve ser mantida no futuro.
"Republicanos e democratas concordam em um ponto: Os EUA vão continuar investindo em imigrantes bem qualificados", diz Felipe Alexandre, advogado de imigração e proprietário da AG Immigration, empresa que fornece assistência jurídica para green cards e vistos americanos.
Mesmo sob um governo comandando por um aliado de Trump, os brasileiros tendem a torcer por uma mudança ideológica na Casa Branca.
Um levantamento realizado pela Ipsos com 24 países aponta que a maioria dos entrevistados votaria em Biden. No Brasil, 39% escolheriam o democrata, enquanto 20% têm Trump como favorito. O único país em que o atual presidente americano conquistaria mais um mandato na Casa Branca é a Rússia. O republicano tem 27% de preferência entre os russos, contra 13% do democrata.
Se confirmado o favoritismo de Biden, configura-se um novo contexto internacional. "Certamente a realidade que emergirá desta eleição norte-americana terá reflexos profundos e ajudará a desenhar as novas estruturas de poder", analisa Márcio Coimbra, cientista político, ex-diretor da Apex-Brasil, acrescentando que Biden representa o retorno a um modelo multilateral onde as agendas globais recobram seu fôlego.