Eleição americana: História mostra que rumo político da Casa Branca interfere no papel do Nordeste

O Ceará e outros estados da região abrigaram bases militares dos EUA na década de 1940 como territórios estratégicos para as forças americanas. Troca de poder na Casa Branca pode mudar prioridades em parcerias e acordos

As "coca-colas". Assim eram apelidadas as moças de Fortaleza que se divertiam dançando e bebendo o famoso refrigerante, um dos antigos símbolos dos EUA, com soldados americanos no Estoril, na Praia de Iracema, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45). A Capital sediava o projeto de uma base militar dos EUA instalada no bairro que é conhecido, hoje, como Pici. Desse episódio histórico, surge uma geração de cearenses que passou a admirar a cultura americana em uma ex-província antes devotada aos valores franceses. A eleição do novo ocupante da Casa Branca na próxima terça-feira (3) reanima o interesse pelos rumos da maior economia do mundo, pois, assim como foi no passado, as novas guerras e batalhas dos "ianques" podem interferir na história de territórios estratégicos como o Nordeste.

"Depois de muita pressão norte-americana, resistência das forças armadas brasileiras e longa negociação, o governo Vargas autorizou a instalação das bases militares, construídas no Amapá, em Belém, em São Luís, em Fortaleza, em Natal, no Recife e em Salvador", narra André Luiz Vieira de Campos, doutor em história, professor da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sobre a presença americana no Norte e Nordeste na Segunda Guerra.

O Departamento de Estado dos EUA temia que os alemães invadissem o Nordeste brasileiro a partir de Dakar ou do arquipélago dos Açores. Caso isto acontecesse, os nazistas poderiam ameaçar o canal do Panamá e o Caribe.

"O pânico que esta possibilidade causou entre os militares norte-americanos pode ser avaliado pelos diversos planos preventivos elaborados pelo exército daquele país; o mais mirabolante deles previa a ocupação do Nordeste brasileiro - com ou sem o consentimento de Vargas - por uma força de 100 mil homens".

A exemplo do contexto atual da disputa entre o presidente Donald Trump e Joe Biden, havia, na época das "coca-colas", uma preocupação sanitária como hoje existe com a pandemia da Covid-19.

"Antes mesmo da assinatura formal do acordo militar com os EUA autorizando a instalação das bases, duas equipes de médicos militares percorreram o Nordeste e o Norte do País, analisando as condições sanitárias daquelas regiões e sugerindo políticas de saúde que preservassem os soldados das endemias locais. Os relatórios produzidos por estas equipes retratam um quadro impressionante: malária, febre tifoide, disenterias, doenças venéreas, esquistossomose, peste bubônica, parasitas intestinais, tuberculose, varíola, tracoma, hanseníase, desnutrição e alto índice de mortalidade infantil estavam entre os problemas de saúde mais sérios identificados. Entretanto, estes estudos não foram feitos para orientar políticas de saúde para a população civil, mas para detectar quais doenças seriam ameaçadoras para as tropas norte-americanas no Brasil", relata Campos.

Guerra com a China

Depois de 75 anos do fim da Segunda Guerra, a história se renova: nos últimos quatro anos, Trump adotou uma retórica beligerante, decretou uma guerra comercial com a China, ameaçou a Venezuela, a Coreia do Norte, tirou os EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) em plena pandemia, apoiou a eleição de governantes conservadores pelo mundo e tratou a América Latina como um "quintal", como definiu o presidente recém-eleito da Bolívia, o esquerdista Luis Arce, que vê em uma possível vitória de Joe Biden uma "oportunidade para conversar".

Para o Brasil do presidente Jair Bolsonaro, ter um progressista como Biden no comando da Casa Branca, como projetam as últimas pesquisas, pode ser um cenário negativo.

"Se o Biden ganhar, para o governo brasileiro, é catastrófico. Desde em 2019, o Brasil investiu apenas em um país nas suas relações, somente nos EUA. A gente não tem outro parceiro de fato importante, que a gente tenha cultivado. Nossos parceiros mais importantes se afastaram do Brasil: é o caso da Argentina, dos países europeus, a relação com a China é de desconfiança, de distância, de frieza", analisa o professor de Política Internacional da Universidade Veiga de Almeida e comentarista na GloboNews, o carioca Tanguy Baghdadi.

Imigração

A menos de oito horas de voo para os EUA (Fortaleza-Miami), o Ceará não tem mais base militar para embarques e desembarques de aviões de guerra dos EUA, como na primeira metade da década de 1940, mas o Aeroporto de Fortaleza (Pinto Martins, aviador cearense de Camocim, foi o piloto pioneiro no trecho Nova York-Rio de Janeiro, em 1923) é hoje estratégico para o setor turístico, permitindo aos cearenses viagens diretas para os EUA, sem o transtorno do passado de "descer" para Brasília ou para o Sudeste em escalas e conexões desnecessárias.

Se na época das "coca-colas", o sonho de um jovem da elite era estudar Medicina ou Direito no Recife ou no Rio de Janeiro, hoje o horizonte é bem maior: o intercâmbio nos EUA está mais fácil, acessível e permite experiências mais enriquecedoras e até a possibilidade de imigração. Seja Trump ou Biden que vença na próxima terça, essa tendência deve ser mantida no futuro.

"Republicanos e democratas concordam em um ponto: Os EUA vão continuar investindo em imigrantes bem qualificados", diz Felipe Alexandre, advogado de imigração e proprietário da AG Immigration, empresa que fornece assistência jurídica para green cards e vistos americanos.

Mesmo sob um governo comandando por um aliado de Trump, os brasileiros tendem a torcer por uma mudança ideológica na Casa Branca.

Um levantamento realizado pela Ipsos com 24 países aponta que a maioria dos entrevistados votaria em Biden. No Brasil, 39% escolheriam o democrata, enquanto 20% têm Trump como favorito. O único país em que o atual presidente americano conquistaria mais um mandato na Casa Branca é a Rússia. O republicano tem 27% de preferência entre os russos, contra 13% do democrata.

Se confirmado o favoritismo de Biden, configura-se um novo contexto internacional. "Certamente a realidade que emergirá desta eleição norte-americana terá reflexos profundos e ajudará a desenhar as novas estruturas de poder", analisa Márcio Coimbra, cientista político, ex-diretor da Apex-Brasil, acrescentando que Biden representa o retorno a um modelo multilateral onde as agendas globais recobram seu fôlego.