Vacina contra a fome

Escrito por Eulália Camurça , eulalia.camurca@svm.com.br

Legenda: Eulália Camurça é professora universitária
Foto: Arquivo pessoal

Eu encontro a fome a cada instante. Ela carrega cartazes estampados ao sinal vermelho. Letras com narrativas de abandono e desalento. Cartazes que se sustentam mesmo diante do olhar indiferente daqueles que, dentro dos carros, com olhos blindados pela indiferença, experimentam a fome, apenas voluntariamente, em jejuns intermitentes para manter a forma física.

A fome me para na rua com os olhos cheios de lágrimas pedindo o que comer. "Eu preciso de comida, meu estômago dói, estou fraca". Ela me comove, me inquieta e entristece. Ela é urgente. Na pandemia, ela se proliferou. Os dados revelam que o número de miseráveis aumentou ainda mais durante esta crise sanitária. E, então, além de não ter o de comer, de não ter abrigo, ela também não tem banheiro nem álcool em gel.
Alguns dias ela se pinta de palhaço para chamar atenção.

Em outros, vira criança e mexe malabares com corpo magro e se chama de artista. Ela dança funk na faixa de pedestre. Passos repetidos para chamar atenção, para comover. Ela revela que está desempregada e deixa o seu número para contato. Ela tem muitos filhos e os reúne nas esquinas, onde ficam a brincar com pedaços de galhos que caem das árvores.

Ela precisa de comida para o corpo, para manter a alma. Tem momentos em que cansa e senta perto do sinal a mudar páginas de uma bíblia. Ela senta, mas a fome não descansa, não cessa facilmente. Porque são muitos pratos vazios. E muitas mentes vazias de noção coletiva também. E falta ação coletiva. Cientistas do mundo fizeram um trabalho bravíssimo em criar, em tempo recorde, uma vacina para nos proteger do coronavírus.

E a fome? Como proteger as pessoas mais vulneráveis, como as crianças e os idosos? Como adiar os sintomas graves, como amenizar os sintomas? Já que o mundo ainda não criou e sem sei se quer uma vacina contra a desigualdade, façamos nossa parte.

Afinal, o apetite de viver persiste mesmo diante da ausência de substância sólida.  Betinho já dizia que a fome tem pressa. Ela urge, ela é destruidora. Enquanto não criamos um prato fundo pra toda fome que há no mundo, como diz a música, precisamos o tempo todo perguntar: o que posso fazer diante da fome do outro neste exato momento?

Eulália Camurça
Jornalista e professora universitária
 

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