Sobreviver para contar

Escrito por Sávio Alencar , salencarlimalopes@gmail.com

Legenda: Sávio Alencar é pesquisador em literatura
Foto: Arquivo pessoal

Como colocar o horror em palavras? Na tentativa de responder à pergunta, Scholastique Mukasonga, escritora ruandesa de expressão francesa, dá corpo a uma obra que, a meio caminho entre documento e ficção, testemunha o genocídio de seu povo.

Em 1994, o massacre bateu à porta de sua família, levando 37 pessoas – seus pais, irmãos, cunhados e sobrinhos. Ela já havia abandonado Ruanda e chegado à França, onde vive, com marido e filhos. Dos Mukasonga, sobreviveram Scholastique, um irmão, que residia em Senegal, e duas sobrinhas, poupadas do holocausto que dizimou 800 mil pessoas, entre tutsis, twas e hutus moderados.

A Scholastique restou a tarefa de narrar a história pregressa de seus mortos, na qual ela própria figura, em episódios de sua infância e juventude. Esse relato, que se estende dos anos 1950 aos 2000, está em “Baratas”, publicado no Brasil pela editora Nós, na tradução de Elisa Nazarian.

De saída, o título – “Inyenzi”, no original – assinala, por meio da metáfora animal, o tratamento desumano a que eram submetidos os tutsis, em meio a pogroms e agressões diversas. “Eu não apenas era tutsi”, diz Scholastique, “mas uma ‘inyenzi’, uma dessas baratas lançadas para fora da Ruanda habitável, talvez para fora do gênero humano”.

Histórias de exílios, terrores cotidianos e privações de toda a sorte enfeixam o livro, até que se chega aos dias de matança generalizada. No entanto, se Mukasonga escreve com a morte em seu horizonte, condição imposta desde o início da narrativa, não lhe escapa o sentido da sobrevivência.

“Eu não estava entre os meus quando foram cortados a facão”, diz ela. “Como é que pude continuar vivendo nos dias da morte deles? Sobreviver! Na verdade, essa era a missão que nossos pais tinham confiado a mim e a André. Deveríamos sobreviver, e no momento eu sabia o que significava essa dor.”

Uma ferida incurável. Assim ela se reporta ao episódio doloroso. Não há remédio, apenas palavras. Eis a pedra de fundação de sua literatura.

Sávio Alencar
Editor e pesquisador de literatura

Consultor pedagógico
Davi Marreiro
16 de Abril de 2024