Isolamento, uma visita à memória

Escrito por Assis Filho ,

O isolamento não costuma ser novidade para artistas, sobretudo de manifestações individuais como a escultura. Mas, o período de quarentena provocado pelo novo coronavírus tem uma particularidade que muda tudo: o impedimento de estar nas ruas, encontrar as pessoas e ter inspiração. Até o isolamento para produção de uma obra, como um retrato, tinha a poesia da solitude às vezes quebrada pela presença do modelo ao vivo. A frustração do impedimento tem a chance de virar combustível para a criatividade.

Para as produções, sempre impressas de muito sentimento, a memória afetiva se torna uma aliada. As visitas passaram a acontecer no espaço das lembranças; são músicas, ligações demoradas regadas a vinho e emoções.

Passar uma tarde viajando no tempo e nas histórias ao rever pela milésima vez aquele álbum que deixou de ser atualizado desde o surgimento dos registros digitais.

É a chance de imaginar como teria sido a vida se tivesse optado por continuar com a carreira no escritório, ou se não tivesse dito aquelas amargas palavras e dado mais uma chance a ela, meu amor eterno até ali.

Uma oportunidade ainda de criar crônicas para a vida que assisto na varanda em frente à minha. Com cenas enquadradas pelas portas da sala e a janela do quarto. Na minha mente, uma rotina extremamente interessante, repleta de sobressaltos, diferente dessa linearidade da minha clausura.

Tudo somado a esse período mais introspectivo e carregado de subjetividade e simbolismos vai se refletir nas produções.

Acredito que esse não é um privilégio só dos artistas, mas uma oportunidade para todos que estão tendo condições de ficar em casa e viver esse momento de isolamento, porém carregado de uma aproximação única com o que há na essência. E se não produtor de arte, nos tornamos mais consumidores dela. Agora, a máxima do poeta Gullar se faz ainda mais válida: "a arte existe porque a vida não basta".

Assis Filho
Escultor

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