“Ela mereceu”

Escrito por Joyceane Bezerra de Menezes ,

O machismo ainda persiste no Judiciário, conforme dois exemplos recentes: o processo de estupro de Mari Ferrer, na comarca de Santa Catarina; e o processo criminal mineiro, no qual o júri acolheu a tese de “legítima defesa da honra”, absolvendo o réu que matou a ex-companheira a facadas. O primeiro caso entra na pauta após a matéria do Intercept que informou a absolvição do réu, divulgando um vídeo da audiência realizada em setembro, na qual o advogado do acusado submeteu a vítima a uma sessão de humilhação, sob os olhos passivos do juiz e do promotor. Em ofensa às normas éticas e técnicas, desenvolveu a sua defesa a partir da desqualificação da honra e da imagem da vítima.

Mostrava fotos da jovem, classificando-as como ginecológicas; alegava dissimulação em seu choro e bradava o desejo de não ter uma filha ou nora como ela. Seu discurso ecoa a cultura do estupro refletida em frases como a que veio de um comentarista, pelas ondas do rádio, na frequência de 100.9 MHz FM: “Se minha filha chegar em casa e disser que foi estuprada em tais circunstâncias... ela vai ficar de castigo feio e eu não vou denunciar um cara desse pra polícia”.

Decência ou indecência não significam recusa ou consentimento ao estupro. Chega! Com a repercussão alcançada, o espetáculo daquela audiência se sobrepôs às discussões centrais do processo quanto à capacidade volitiva ou não da moça em consentir com o ato sexual. O próprio promotor ressaltou que havia fortes indícios de que ela estava sob o efeito de substâncias; a perícia comprovou ruptura himenal; e o exame de DNA associou o sêmen achado ao material genético do acusado que havia negado o contato sexual com a vítima. O CNJ decidiu apurar irregularidade da conduta do juiz; o Senado Federal emitiu nota de repúdio ao advogado, enquanto parte da sociedade mostrou severa repulsa. Mas o salvo-conduto mineiro para matar em legítima defesa da honra não repercutiu. Não há quem mereça!

Joyceane Bezerra de Menezes 

Advogada e professora do Doutorado/Mestrado da Unifor

Consultor pedagógico
Davi Marreiro
16 de Abril de 2024