Covid-19 e a angústia da existência

Escrito por Kelly Albuquerque - Professora universitária de Psicologia ,

A Covid-19 permite refletir sobre o efeito da doença na vida, mostrando que a relação com ela não se limita aos sintomas. A dor não está no corpo. O que lateja é a vida. Confrontamo-nos a possibilidade de vê-la se escafeder sem ter como impedir. A doença faz o centro de gravidade girar em torno do ser, fazendo-nos voltar para si e fazer um balanço de ações e sentimentos. Não gememos pela dor física, mas pela angústia da existência. Tememos a morte. Na verdade, não acreditamos na morte de si mesmos, embora falemos que iremos morrer um dia. Tal é assim que sonhamos com nosso próprio sepultamento. Como posso perceber-me morto se já morri? Pois é, somente podemos capturar a morte na vida porque a morte acaba com a morte, uma vez que já não poderemos falar sobre ela quando mortos. O silogismo que diz "José é um homem. Os homens são mortais, logo, José é mortal", é verdade somente para José, não "para mim". Ele é uma generalidade não aplicada em si mesmo. Ora, não somos uma generalidade, somos únicos. Somos fulano de tal, filho de sicranos, enfim, temos uma história. José, afinal, sentia o cheiro da carne assada que eu sentia quando chegava da escola? Porventura, ele sentia o temor da surra dos pais quando das travessuras cometidas? José sentiu um frio na barriga ao ver seu primeiro amor? Definitivamente, não! Contudo, o medo da morte não pode nos acovardar. Temos de encará-la em vida - a experiência do coronavírus nos dá tal oportunidade - afinal, há vidas que já são mortas. O caos mostra que, quando há investimento coletivo, as "coisas andam" e buscam resolução. Quiçá, outras políticas recebessem o mesmo trato. São através de ninharias que se demonstra o caráter. Pois bem, em tempos de calamidade, ninharias são bem-vindas. Deixemos de nos ocupar com "o que fazer na quarentena" - sintoma do individualismo imoral. Que o ócio nos mostre o terror da morte e esta, com sua face nua, nos faça retornar à condição de humanos.

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