Afetos ferozes

Escrito por Sávio Alencar , salencarlimalopes@gmail.com

Com “Dôra, Doralina”, a editora José Olympio dá continuidade à reedição da obra de Rachel de Queiroz, depois de “O Quinze” e “As três Marias”. Publicado em 1975, o livro chega em sua 24ª edição, mas sem os bons paratextos dos títulos anteriores, prefaciados por nomes notáveis da inteligência brasileira, como Elvia Bezerra e Heloisa Buarque de Hollanda.

Cronista contumaz, Rachel de Queiroz voltava à narrativa longa com a história de Maria das Dores, narradora e protagonista do romance. Por sua voz, o leitor é apresentado ao dia a dia da fazenda Soledade, onde Dôra vive com a mãe, Senhora, e as empregadas da casa.

Melhor seria falar ‘sobrevive’: mãe e filha quase só se toleram, numa relação tensa, silenciosa e hierarquicamente bem definida. Em Soledade, todos se curvam ao poder de Senhora, matriarca sertaneja exemplar.

Dôra parece não ter vocação feliz. O conflito com a mãe segue no seu encalço mesmo quando se casa com o agrimensor Laurindo, de quem logo fica viúva – as circunstâncias da morte do marido são um dos pontos altos da história. Fugindo de seu destino trágico, ela vai morar em Fortaleza, na pensão de D. Loura, para quem passa a trabalhar.

Lá conhece o casal Brandini e Estrela, artistas de teatro em uma companhia mambembe, a que se junta como atriz de última hora. O grupo segue para o Rio de Janeiro. No último trecho do percurso, feito em navio, Dôra aproxima-se de Asmodeu, o Comandante; com ele, vive um romance – e uma nova vida.

No entanto, há coisas que Dôra não deixa para trás, como Senhora, já morta a essa altura da narrativa. A morte da mãe, aliás, redesenha o destino da filha. Romance primoroso, é um daqueles que, ao seu término, fere o leitor como uma canivetada aberta. Em “Dôra, Doralina”, Rachel de Queiroz mostra que algumas feridas são para sempre.

Sávio Alencar

Editor e pesquisador de literatura

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