Fuga de cérebros: cresce saída de mestres e doutores cearenses para o exterior

Emigração intelectual tem se intensificado nos últimos anos com a desvalorização da ciência e cortes de investimentos na educação

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Profissionais qualificados optam por buscar oportunidades fora do país
Foto: Shutterstock

A escassez de emprego e a crescente desvalorização da ciência no Brasil têm agravado um fenômeno nos últimos anos: a fuga de cérebros. Sem remuneração condizente com a experiência e boas condições de trabalho, mestres e doutores acabam por encontrar em outros países a oportunidade de melhorar de vida.  

Conforme o professor José Macêdo, do Curso de Ciência da Computação da Universidade Federal do Ceará (UFC), esse movimento tem se intensificado bastante nos últimos cinco anos por diversos fatores que também facilitaram a contratação internacional durante a pandemia, como o trabalho remoto.  

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“Começamos a ter um trabalho muito forte em trabalhos relacionados à transformação digital, o que criou um ambiente muito propício a contratações. As empresas que estavam contratando localmente tiveram que contratar internacionalmente, passaram a procurar em outros lugares”, explica.

Embora não haja dados específicos sobre a quantidade de pessoas que deixaram o Brasil para estudar, informações da Receita Federal apontam que 599 residentes no Ceará apresentaram declarações de saída do país de 2017 a 2021. Somente em 2020, o número chegou a 190, 79% maior que em 2019.   

O desejo de trabalhar com pesquisa fora do país surgiu para Camila Mont’alverne, formada em Jornalismo e Mestra pela Universidade Federal do Ceará (UFC), quando no Doutorado sanduíche, modalidade que permite que parte do trabalho seja feito internacionalmente, passou seis meses na Bélgica.  

A experiência fez a cearense atestar as lacunas que ainda existem na produção científica no Brasil. "Voltei do ‘sanduíche’ com essa perspectiva ainda mais clara de que, no Brasil, estamos muito atrás em suporte oferecido à pesquisa, quando comparado com outros países do mundo e isso foi algo que me incomodou bastante”, relata. 
 

Apesar disso, o retorno não envolvia muitas perspectivas dessa emigração em um curto prazo. No doutorado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), a jornalista começou a trabalhar em Curitiba e defendeu a tese em março de 2020.  

“Por volta de maio e junho do ano passado, apareceu uma vaga de trabalho em Oxford, em um projeto que estuda confiança nas notícias, e resolvi tentar, pois era algo muito próximo das minhas pesquisas e interesses e fui selecionada”.   

Com contrato até 2023, Mont’alverne atua como pesquisadora do Instituto Reuters, que é ligado à Universidade de Oxford, e afirma que não há pretensões de voltar ao Brasil mesmo após o fim do vínculo empregatício.  

Legenda: Camila atua no Instituto Reuters, vinculado à Universidade de Oxford
Foto: Arquivo pessoal

Sem experiência, com oportunidade 

Já Kevin Barros desejava fazer um mestrado em outro país ainda quando estava na graduação de Ciências da Computação. A aspiração ficou em segundo plano por não ter condições financeiras. Acabou ingressando na pós pela UFC, mas a vontade de exercer sua profissão fora do Brasil ainda era algo almejado.  

“No meio do mestrado, voltei a trabalhar e devido às condições do Brasil, eu sempre contemplava a ideia de trabalhar fora. Tenho um tio que mora nos Estados Unidos, foi para fazer um MBA e mora lá até hoje, vi as possibilidades”.  
Kevin Barros
cientista da computação

Ainda quando estava no mestrado, Barros recebeu uma oportunidade para trabalhar em Quebec, no Canadá, em 2019, onde mora desde então. “Nessa época, ainda não tinha concluído o mestrado e, por isso, acabei trancando, mas é um curso que eu quero terminar. Ficou faltando só a dissertação e continuo estudando por aqui”, conta.  

Legenda: Kevin mora desde 2019 no Canadá
Foto: Arquivo pessoal

Para Barros, o caso dele é exceção da regra, pois colegas da mesma área que trabalham na mesma cidade já tinham mais de 10 anos de experiência, enquanto ele tinha apenas dois. "Não é tão comum, mas acontece mesmo, porque essa área de tecnologia é muito demandada no mundo todo”.  

Dificuldades no mercado 

Diante das atuais experiências, a jornalista Camila Mont’alverne afirma que voltar ao Brasil seria a última opção. “Minha pesquisa e carreira se tornaram inviáveis no Brasil. Tínhamos problemas e limitações de pesquisa, de estrutura, mas isso se acentuou cada vez mais nos últimos anos”. 

Para Mont’alverne, uma das maiores dificuldades é a falta de profissionalização da pesquisa. Ela pontua que essa atuação não é vista pela sociedade e pelo governo como um trabalho, e isso ocasiona a precarização. 

"O grande ‘gap’ que eu vejo entre a pesquisa brasileira e de outros países é o grau de profissionalização. Aqui, não temos que tirar dinheiro do próprio bolso como acontece no Brasil. Por outro lado, faz com que o pesquisador brasileiro seja muito versátil, mas pesquisa é uma atividade que, se você não tem investimento, como você vai fazer algo a longo prazo?”.   
Camila Mont'alverne
jornalista e pesquisadora

Prova dessa desvalorização foi o 'apagão' de dez dias da Plataforma Lattes, que reúne informações sobre pesquisadores de todo o Brasil, após um dispositivo responsável por controlar os servidores onde as plataformas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ficam hospedadas ter sido queimado. O sistema voltou a funcionar parcialmente no último dia 3. 

Embora a área de tecnologia esteja crescendo, Kevin Barros relata ter procurado emprego como cientista de dados, mas não encontrou. “Acabei indo para um trabalho mais tradicional. Mas se eu tivesse encontrado uma oportunidade nessa área, eu teria ficado sim no Brasil”, explica. 

Assim como Mont’alverne, Barros afirma que não há nada que o atraia para voltar ao Brasil. “Depois de ter a experiencia de morar no Canadá, não me vejo voltando para uma vida similar à que eu tinha. Mesmo ganhando bem mais dinheiro, isso não seria suficiente, tem coisas que o dinheiro não compra”. 

Impactos para a economia 

Para o professor Macêdo, essa emigração intelectual gera impactos negativos para o país, tanto econômicos quanto para a produção tecnológica e de ciência. “O governo faz investimentos na educação. O custo para você formar um aluno em mestrado ou doutorado é muito alto, isso é um prejuízo financeiro, pois essa pessoa não vai gerar valor para o país”. 

No entanto, sem oportunidade, a saída para estes profissionais é buscar empregos ou bolsas estudantis em outros países.  

“O desenvolvimento tecnológico é muito importante, há essa perda de cérebros e, com isso, temos menos empresas, menos capacidade de investimento. Estamos perdendo dinheiro e a possibilidade de gerarem o valor para a economia”.  
José Macêdo
professor da UFC

Por isso, o professor pondera a necessidade de se retomar os investimentos em ciência e tecnologia, “com uma força muito maior, pois nos últimos foram reduzidos drasticamente. Além disso, formação de pessoas, não só de universidades, mas centros de pesquisa para acelerar essa formação”.  

Além disso, destaca a importância de serem geradas oportunidades para estes profissionais. “O Brasil precisa ainda se modernizar no termo da legislação, com a Lei das Startups já foi um começo. Temos que ter um ambiente mais propício para a criação de empresas”, finaliza. 

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