Após mais de meio século, mulheres são consideradas no sistema tributário brasileiro; veja avanços

Reforma tributária prevê critério de equidade de gênero na avaliação de benefícios fiscais

A reforma tributária, promulgada no dia 20 de dezembro, prevê critérios de equidade de gênero na avaliação de benefícios fiscais no País. Esse é um dos quatro pontos definidos que poderão ajudar a combater os vieses implícitos de discriminação contra as mulheres no sistema tributário brasileiro, existentes desde a criação do modelo atual, há 58 anos.

Pelas regras vigentes, as mulheres pagam proporcionalmente mais impostos na comparação com os homens, ampliando a desigualdade econômica entre ambos. Além disso, no Brasil, os produtos voltados para a saúde feminina são mais tributados. 

Para a pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Luiza Machado, a reforma tributária trouxe ganhos históricos. 

“Pela primeira vez na história do Brasil, a igualdade entre homens e mulheres será um critério explícito na Constituição para avaliar medidas tributárias”, afirma. O acréscimo desse ponto foi resultado de alteração proposta pelo grupo de pesquisadoras.

Reforma tributária

1º ponto

No artigo 9º do texto da reforma, consta a lista de bens e serviços com alíquotas reduzidas. A cada cinco anos, esses benefícios tributários serão reavaliados para identificar se realmente chegam ao consumidor final e quem é beneficiado, considerando a igualdade entre homens e mulheres.

2º ponto

O cashback, sistema de devolução de imposto para famílias de baixa renda, deverá atender mais às mulheres, as principais chefes de famílias no Brasil. No entanto, a definição dos critérios dependerá de uma lei complementar.

3º ponto

Haverá isenção de itens de higiene menstrual. A medida contribui no combate à pobreza menstrual e evasão escolar de meninas de baixa renda, por exemplo. Esse também é um ponto que dependerá de lei complementar.

4º ponto

A alíquota zero para cesta básica nacional e para medicamentos também devem ajudar a corrigir as distorções de gênero no sistema tributário brasileiro. A lista de remédios e de alimentos também será definida em lei complementar.

Conforme Luiza, a emenda surgiu a partir do entendimento, atestado pela literatura internacional e nacional, de que a tributação não é neutra e tem impactos de gênero e raça. 

Agora, a cada cinco anos, os regimes especiais (benefícios tributários) também serão avaliados sobre o aumento ou redução da igualdade entre homens e mulheres. É uma conquista histórica, que coloca o Brasil dentro das melhores práticas internacionais no combate às desigualdades na tributação”, enfatiza. 
Luiza Machado
Advogada, mestre em Direito pela UFMG e integrante do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da Escola de Direito da FGV-SP

Outro avanço, aponta, foi a inclusão de produtos de higiene menstrual na lista de bens elegíveis de redução de 100% da alíquota. Com isso, itens como absorventes e coletores menstruais — com taxas de 27% e 33%, respectivamente — poderão ter a carga tributária zerada. 

Entenda

Por que as mulheres pagam mais tributos do que os homens?

Embora o sistema tributário vigente tenha a premissa de neutralidade e não inclua uma perspectiva de gênero, a tributação regressiva (quando se arrecada mais de quem ganha menos) acaba penalizando mais as mulheres. Estatísticas comprovam que as mulheres ganham menos do que os homens, sobretudo as negras.

Por que alguns produtos femininos são mais tributados?

No sistema tributário vigente, produtos ligados à fisiologia feminina e ao trabalho de cuidado são mais tributados do que itens geralmente voltados para o público masculino ou não essenciais. Por exemplo, o anticoncepcional tem uma alíquota de 30%, enquanto o percentual da camisinha é de 9% e o da pílula para disfunção erétil é de 18%, conforme estudo da pesquisadora Luiza Machado.

O que é a tributação regressiva?

No Brasil, a tributação é concentrada no consumo e não na renda, ocasionando a chamada regressividade. Por exemplo, uma diarista que recebe R$ 1 mil e um empresário que ganha R$ 10 mil pagam os mesmos R$ 10 de impostos quando consomem determinado produto. Ou seja, para a taxação de ambos, não é considerado o rendimento, a riqueza e o patrimônio de cada.

Alíquota para medicamentos

No texto da reforma, também está prevista a alíquota zero para a cesta básica e medicamentos. Essas medidas ainda serão estabelecidas em lei complementar, mas, se efetivadas, desempenharão um importante papel na correção das distorções de gênero no sistema tributário. 

“Sabemos que os lares chefiados por mulheres, especialmente pelas negras, gastam mais com a subsistência da família do que os lares chefiados por homens, especialmente os homens brancos”, destaca.

Para a pesquisadora, o mesmo acontece com medicamentos em razão do trabalho de cuidado atribuído às mulheres, comprometendo a renda delas com remédios para dependentes.

Nesse contexto, outro ponto que poderá ajudar a reparar a desigualdade de gênero é o cashback, a ser implementado para devolver o imposto pago para as famílias de menor renda.

Conforme estudo do movimento "Para Ser Susto", o sistema pode impactar 72,4 milhões de pessoas, por meio da devolução de R$9,8 bilhões.

57%
Entre as pessoas beneficiadas com o cashback, 72% seriam negras e 57% mulheres. 

Quais demandas continuam?

A pesquisadora Luiza Machado pondera que a sociedade ainda precisa se manter mobilizada para cobrar e acompanhar as leis complementares necessárias para a concretização dessas conquistas. Além disso, observa, um tópico preocupante é a retirada de armas e munições da lista de incidência do imposto seletivo. 

“Caso isso se mantenha, teremos uma drástica redução da tributação de armas no Brasil”, enfatiza. O imposto seletivo foi criado para desestimular o consumo de alguns itens, como cigarros, bebidas alcoólicas e os próprios armamentos. 

Outra demanda é pela inclusão explícita da infraestrutura de cuidado ao Fundo Regional, voltado para reduzir as desigualdades regionais, incluindo uma lista de ações para gerar emprego e renda no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A emenda proposta pelas pesquisadoras não foi acatada, mas ainda há uma busca para contemplá-la em obras de infraestrutura. 

Não há vedação para os estados utilizarem o Fundo Regional para a construção de creches e espaços de longa permanência para idosos, mas os estudos demonstram que, geralmente, esses recursos são mais utilizados para rodovias e obras mais tradicionais e menos com essa perspectiva de fornecer serviço de cuidado para a população”, avalia. 
Luiza Machado
Advogada, mestre em Direito pela UFMG e integrante do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da Escola de Direito da FGV-SP

Ela acrescenta que o benefício teria uma ligação direta com o trabalho feminino, diminuindo os afazeres domésticos e aumentando as possibilidades de inserção plena no mercado formal.

Todos os dias, meninas e mulheres dedicam 12,5 bilhões de horas com o cuidado aos outros, gerando contribuição de, pelo menos, US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, segundo o comitê de Oxford para o Alívio da Fome (Oxfam Brasil). Essa sobrecarga pode interromper a trajetória delas no mundo do trabalho, agravando a assimetria de gênero.

A reforma tributária representa um enorme avanço para o Brasil  — e também especificamente para as mulheres — quando comparada com o regime tributário vigente. A inclusão da análise de gênero nos benefícios tributários é histórica. E especialmente quando olhamos para o cashback, que se for bem estruturado, poderá reduzir a regressividade do nosso sistema tributário e as desigualdades de gênero e raça. Para além disso, a próxima fase da reforma — a sobre a renda — precisa aumentar a tributação sobre os mais ricos. Isso poderá reduzir a tributação do consumo que afeta mais os mais pobres", analisa.
Luiza Machado
Advogada, mestre em Direito pela UFMG e integrante do Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da Escola de Direito da FGV-SP

Dúvidas frequentes

O que é a Reforma Tributária?

A Reforma Tributária foi proposta com o objetivo de simplicar a cobrança dos impostos. Desde 1960, diversos governos tentaram reformar o sistema tributário brasileiro. Em 7 de julho de 2023, o texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados. Em 20 de dezembro do mesmo ano, foi promulgada pelo Congresso.

O que muda com a Reforma Tributária?

A Reforma Tributária vai unificar três impostos federais (IPI, PIS e Cofins), um estadual (ICMS) e um municipal (ISS) em dois tributos diferentes: CBS (competência da União) e IBS (de estados e municípios).

Quando as mudanças entram em vigor?

O novo modelo passará por uma transição para adaptação. Ele estará plenamente implementado, para todos os tributos, a partir de 2033. As mudanças se iniciam em 2026.

Como será feita a cobrança desses impostos?

Haverá um período de transição: IVA federal terá alíquota de 0,9% e o IVA estadual e municipal, de 0,1%.

O que é a Cesta Básica Nacional de Alimentos?

A Reforma aprovada cria a Cesta Básica Nacional de Alimentos. As alíquotas para os impostos federal, estadual e municipal sobre esses alimentos serão reduzidas a zero para os produtos da cesta. Caberá uma lei complementar para definir quais produtos farão parte da cesta básica.

O que é o cashback?

Será criado um sistema de cashback para as famílias de menor renda. O objetivo da medida é reduzir desigualdades de renda com a devolução de impostos para um público determinado.