Um novo que não é normal

O Centro é um miniuniverso. Uma amostra que reúne tudo o que a cidade toda é

Escrito por Theyse Viana , theyse.Viana@svm.com.br
Legenda: Pra mim, o Centro é um miniuniverso. Uma amostra que reúne tudo o que a cidade toda é
Foto: Camila Lima

Odeio esse negócio de "novo normal". Entre as muitas coisas de que eu desgosto dessa pandemia, essa expressão só perde mesmo pra falta de abraço e pro próprio coronavírus. Na verdade, odiar, odiar, não, isso é muito forte. Mas eu detesto isso de chamar de "normal" uma realidade que ninguém aguenta mais. Esse medo, a insegurança, os rostos sem sorriso, as mãos ressecadas de álcool, as pessoas prostradas em leitos, afogadas no seco, sem respirar... Não, não tem absolutamente nada de comum, natural nem banal nisso. Mas depois de uma passada pelo Centro de Fortaleza, me peguei pensando nesse conceito bizarro.

Ainda em setembro, quando o Casarão dos Fabricantes e a memória que ele representava viraram cinzas, fui à rua como repórter pela primeira vez depois de algumas semanas de home office. A contragosto, é verdade, mas o dever se sobrepõe à vontade.

No carro, passando no cruzamento entre o Paço Municipal e a Catedral, o nervosismo já bateu. Era muita gente. Muita. Gente. Era um Centro daqueles de 23 de dezembro, sabe? Quando o carro tem de se esgueirar a 10 km/h entre os pedestres. Um pandemônio na pandemia.

Na lentidão de primeira marcha, observei a urbe frenética e (mal) mascarada ao redor. Era como se eu estivesse em câmera lenta, e as pessoas em "timelapse". Não entrava na minha cabeça, aquele formigueiro em plenos milhares de casos e mortes pela Covid. E, ao mesmo tempo, eu achava estranho estranhar. Dá pra entender? Ando pelo Centro desde pequena, antes arrastada pela mão esquerda da minha mãe, hoje sozinha, movida pela força da impaciência com quem para no meio da calçada pra olhar vitrine. Pra mim, não reconhecer, ainda que no inconsciente, o direito do Centro de ser caótico, que essa é a identidade dele, foi um soco no pulmão.

Naquele sufoco mental, ainda havia as máscaras. Brancas, pretas, vermelhas, floridas, de princesas da Disney, do rosto do presidente, dos Minions, da língua dos Rolling Stones, de cachorro, gato, dinossauro... Tava tudo lá nos camelôs, junto dos fones de ouvido, carregadores e chips de celular. Ao lado das calcinhas e cuecas. Penduradas no isopor da água geladinha que é só um real. As proteções "3D" contra o corona, aliás, eram 3 por 10, mas vendiam como água. E nem essa bebida, que já foi meu alívio quando o sol secava a boca, eu teria coragem de comprar, hoje.

Não sei nem explicar como me foi esquisito ver máscaras incorporadas ao cotidiano do Centro-de-vender-tudo, ao mesmo tempo em que grande parte das pessoas as usava com o nariz de fora, abaixo do queixo, penduradas na orelha. Foi além de esquisito sentir medo de estar ali. De descer do carro, de esbarrar com pessoas na José Avelino e sorrir em desculpa.

Foi estranho demais não conseguir entrar num dos galpões de lá, falar com as pessoas (o que é minha coisa preferida sobre o jornalismo), porque os corredores antes já claustrofóbicos e insalubres eram agora ainda mais.

Pra mim, o Centro é um miniuniverso. Uma amostra que reúne tudo o que a cidade toda é: tem gente morando na rua, tem casarão, condomínio, mercearia, praça, igreja, motel, hotel. Tem pobre, rico, miserável, ladrão, polícia. Ônibus, metrô, táxi, bicicleta, carro, avião de brinquedo. Vende árvore de Natal, pisca-pisca, Papai Noel que dança funk. Queijo, cachaça, planta, balão de aniversário, panela, rede, sapato, bolo. E vende máscara, agora. Em todo canto vende máscara.

Vai chegar de novo o momento em que eu vou voltar ao Centro e só vou me preocupar mesmo em guardar o celular direitinho, pra chegar em casa com ele, como sempre foi. Que vou esbarrar em alguém e sorrir pedindo desculpas, e ele vai ver meu sorriso de dentes tortos. Que vou sentar de novo no chão da Praça do Ferreira pra conversar com quem faz dali uma casa, na falta de um teto. Bom, isso, na verdade, eu queria mesmo era que nunca mais acontecesse. Utopia.

O fato é que tenho duas grandes torcidas, hoje: a primeira é pela vacina, claro, nunca quis tanto uma agulhada no meu braço. A segunda, que talvez venha por efeito, é para que tudo volte ao normal. Não esse "novo", bizarro e intragável, mas aquele antigo - de Centro lotado, calorento e caótico, mas que sabia ser confortável tanto como sabe ser saudade.

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