Solidariedade nas comunidades de Fortaleza busca diminuir problemas deixados pelo coronavírus

Moradores se mobilizam para ajudar vizinhos durante a pandemia e diminuir vulnerabilidades com doações e compartilhamento de informações sobre o vírus

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: Rubenia Santos Teixeira criou um movimento para arrecadar alimentos, produtos de limpeza e máscaras de proteção para a comunidade no Titanzinho
Foto: Foto: Camila Lima

Pertencer à cidade não é apenas residir nela. Engajar-se nos problemas, entender questões da vizinhança e buscar ajudar quem está perto também são partes fundamentais de se tornar um cidadão daquele território geográfico - como Rubenia Santos Teixeira, 23, faz do Titanzinho, no bairro Serviluz, em Fortaleza.

O afeto que sente pelas pessoas de onde mora desde a infância fez a jovem procurar soluções para a crise que alguns moradores da comunidade estão vivenciando devido ao regime de isolamento social decretado no Ceará até o dia 20.

A mobilização inspirou solidariedade entre os amigos da jovem, que agora lutam para arrecadar alimentos, produtos de limpeza e máscaras de proteção a serem doados à população mais vulnerável da região. O projeto, que já existia desde o fim de 2019 e ganhou ainda mais importância em tempos de pandemia, é intitulado "Quilo do Amor".

Segundo a jovem, muitos moradores da comunidade são vendedores ambulantes e pescadores e dependem do movimento da cidade para obter renda. Ela explica que essas pessoas não podem trabalhar no momento, fazendo crescer a demanda por doações. "Em algumas escolas, foram liberadas cestas básicas, muita gente recebeu. Mas numa favela, em cada casa tem no mínimo umas 5 pessoas que moram dentro. Uma cesta acaba em três dias. E nos outros dias? Como que fica?", questiona Rubenia.

Em uma pesquisa feita pelo Data Favela, 63% dos moradores de favelas do Brasil entrevistados afirmaram que a alimentação seria prejudicada caso precisassem ficar em casa, sem renda. Foi vendo a situação se agravar entre os vizinhos que Rubenia decidiu abdicar do isolamento para formar uma rede de apoio. "Muita gente vê e acha que só sou eu, mas é um coletivo. É um momento que está todo mundo ajudando o próximo", diz.

Além dos alimentos, a jovem percebeu que era necessário informar às pessoas sobre o perigo do vírus. Vídeos compartilhados nas redes sociais da associação de moradores, cartazes fixados pela vizinhança e "conversas sérias" com quem encontra pela rua são algumas das ações que tenta realizar no tempo livre.

"Se o presidente fala, alguns acreditam. Às vezes, eles até brincam comigo, falando que é uma gripezinha. A falta de informação é muito grande", lamenta.

Auxílio emergencial

Mesmo quando está em casa, Rubenia é procurada por conhecidos que precisam de ajuda para acessar a internet. No últimos dias, mais de 20 vizinhos pediram ajuda para o cadastramento no auxílio emergencial concedido pelo Governo Federal. "As pessoas que me procuram é porque não sabem ler, e fica bem mais burocrático mexer na internet".

Situação parecida foi observada pelo administrador da ONG União do Povo de Santa Edwiges, George Sosa, 67, na comunidade do Curió. Ele acabou cedendo parte do espaço da ONG para fazer o cadastro de moradores no site da Caixa Econômica Federal. "Quando dá errado, eles ficam desesperados. São pessoas analfabetas, que não sabem dos seus direitos. Nós ficamos de 7h às 20h", relata.

George conta que algumas costureiras fazem máscaras e distribuem na comunidade, enquanto outros moradores arrecadam alimentos. Ele vive no bairro há 27 anos e "viu a comunidade nascer", tendo até rua com seu nome. Mesmo assim, ficou espantado com a realidade vulnerável dos moradores e diz que, apesar de ser grupo de risco pela idade, está disposto a contribuir como puder.

Solidariedade é afeto

"Embora a sociedade seja individualista, quando se coloca em xeque a própria existência, todos estamos em risco. E, então, buscamos a preservação dos vínculos sociais, assim se manifesta a solidariedade. É um tipo de afeto, de vínculo forte", Leila Passos

É assim que Leila Passos, doutora em Sociologia e professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (Uece), explica o senso solidário aflorado durante a pandemia. Nas periferias, o afeto pelo local pode ser somado à vontade de ajudar, o que resulta em comunidades se mobilizando para sanar problemas compartilhados.

De acordo com a pesquisadora, os territórios das periferias de Fortaleza acabam sendo estigmatizados e deixados à margem. Por isso, é comum encontrar moradores que buscam se proteger. "Eles constroem práticas não só para sobreviver, mas para reinventar suas formas de viver", explica. E assim surgem coletivos de música, grupos artísticos e também movimentos políticos e sociais. Para ela, essa característica faz com que a solidariedade entre os moradores seja ainda mais fortalecida.

Leila atenta para o fato de que não é possível romantizar as ações coletivas da periferia. É necessário, segundo ela, responsabilizar os órgãos do Estado para que protejam esses espaços e quem mora neles. "Ainda há resistência dentro da periferia. Eu acredito que essas resistências são formas de se contrapor ao instituído, às desigualdades e discriminações. Daí pode nascer a construção da prática solidária".

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