Sistema pune, mas não ressocializa o adolescente infrator
A Capital conta com apenas seis Creas para as medidas socioeducativas em meio aberto. Com falta de estrutura e gravidade do ato infracional, essas sanções caem quase 50%, dando espaço para o internamento
O número de sentenças para cumprimento de medidas socioeducativas em regime aberto aplicadas para adolescentes em conflitos com a Lei caiu 47,7% em 2016 em relação ao ano anterior, em Fortaleza. De acordo com o secretário de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos e Combate à Fome do município, Elpídio Nogueira, as equipes dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) realizaram atendimentos para 2.250 adolescentes infratores em 2016. Em 2015, foram 4.303. Em 2014, esse número se manteve em 4.030. Para 2017, a expectativa é que os atendimentos se mantenham emigual número do ano passado. Até agora, 1.430 adolescentes foram acompanhados pelas equipes de assistência do Município.
A redução drástica não revela um cenário de melhora. Muito pelo contrário. Desnuda que o universo dos adolescentes da Capital está cada dia mais violento. Na mesma proporção que as medidas socioeducativas mais brandas caíram, as sentenças para internação - a mais restritiva de direitos e só aplicada em casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou reiteração - aumentaram. Conforme o juiz titular da 5ª Vara da Infância e Juventude, Manuel Clístenes, se há quatro anos apenas 30% das sentenças determinavam a internação em centros socioeducativos, hoje elas somam 50%.
"De dois anos para cá, tivemos uma explosão de roubo de veículos. Esse crime foi o que mais aumentou. A Polícia investiga, apura e prende. E é um dos mais perigosos. A abordagem é violenta, geralmente à mão armada, com restrição de liberdade. A maioria dos homicídios tem envolvimento de menor de idade. O que a gente percebe também é que aumentou a crueldade. Furam olhos, cortam cabeça, pés, mãos. São homicídios múltiplos. Essas coisas pequenas de antigamente, como roubo de celular, nem chega mais aqui", compara o magistrado, coordenador das Varas da Infância e Juventude de Fortaleza.
Outro dado alarmante é o índice de descumprimento das medidas socioeducativas. Conforme o Poder Judiciário, chega a 80% de desobediência. Nas medidas de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), uma das modalidades de meio aberto, o número é menor, aproximadamente 60%.
Sem dados fechados sobre a reincidência dos adolescentes nos atos infracionais, Clístenes assegura que houve crescimento. "A sensação que a gente tem é que a reincidência está maior, não só no meio aberto, como no meio fechado. Tem adolescente que sai da internação e retorna um dia depois", justifica.
Críticas
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece, em seu art. 112, seis medidas socioeducativas a serem aplicadas por jovens que tiveram conflito com a Lei: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi liberdade e internação em estabelecimento educacional. As duas últimas são de responsabilidade do Estado e as outras são do Município.
A estrutura para garantir o acompanhamento das medidas em meio aberto é do Creas, que dispõe, na Capital, de uma equipe multidisciplinar (pedagogo, psicólogo, assistente social e advogado) para cada um das seis unidades. A equipe realiza os atendimentos não apenas para os adolescentes em conflito com a Lei. Para Elpídio Nogueira, a estrutura é suficiente.
Para o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), o que acontece é uma desestruturação da política de assistência no meio aberto. O assessor jurídico da organização não-governamental, Acácio Souza, diz que um relatório foi realizado e observou fragilidades. "Essa desestruturação tem servido para o Sistema de Justiça tentar justificar o aumento das medidas de internação. O número de Creas está aquém do que deveria ter. Tem sobrecarga de atendimento, têm equipes terceirizadas. O que deixamos claro é que a desestruturação do meio aberto não pode servir de álibi para o Sistema de Justiça cometer ilegalidade. Isso acontece, sobretudo no Interior", critica Souza.
O discurso de que as falhas do Sistema e a ausência de políticas públicas para esse universo ceifam a juventude pobre e vulnerável se engrossa com a fala do professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Leonardo Sá. Para ele, como não há políticas públicas de garantia de direitos, não há como culpar a ferramenta legal de ser inadequada. "As medidas são "falhas", pois estão isoladas, sem o apoio de políticas públicas que são necessárias para seu sucesso. E, ademais, a Lei existe para buscar cenários melhores e não para se adequar aos cenários factualmente piores. Há um mito de que o adolescente em conflito com a lei é o que mais comete crimes violentos, não é estatisticamente verdadeiro. Demonizar adolescentes é um erro, desvia a atenção do fato de haver adultos falhando com suas responsabilidades, principalmente, os adultos que governam e não cumprem a lei".
Desequilíbrio
A falha no sistema é admitida pelo juiz da 5ª Vara da Infância e Juventude. Muitas vezes contrário ao que diz a Lei, ele confessa que a situação foi agravada com o envolvimento das facções criminosas. Para ele, hoje é incompatível lutar pela ressocialização dos adolescentes com medidas socioeducativas contra os grupos criminosos organizados. "É muito fácil as entidades dos Direitos Humanos apontarem o erro. Mas hoje é o Estado puxando de um lado- com uma estrutura deficitária- o adolescente e a facção puxando do outro. Quem tem mais força? A facção. Eu não sei como lutar com essa realidade. Teria que ter alto investimento em educação, assistência social, políticas contra droga e uma solução de segurança pública contra facção para ter uma saída", desabafa Clístenes.
O juiz coordenador das Varas da Infância e Juventude de Fortaleza, Manuel Clístenes, aponta que o poderio das facções criminosas nas comunidades também impede a saída do adolescente do crime organizado