Regionais 5 e 6 lideram em violações contra crianças e adolescentes

Violências física, psicológica, sexual e outros tipos de agressões são subnotificadas nas regiões mais ricas da cidade, segundo MPCE; quase 7 mil denúncias já chegaram aos Conselhos Tutelares de Fortaleza, neste ano

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Bairros pobres da cidade são cenários mais listados nas denúncias de violações aos direitos de crianças e adolescentes
Foto: FOTO: NATINHO RODRIGUES

Da construção civil à humana, há um consenso: edificar e cuidar das bases é fundamental. E se o alicerce da sociedade são as crianças, Fortaleza ainda tem falhado na tarefa de protegê-las: entre janeiro e 9 de dezembro deste ano, 6.863 denúncias de violações contra crianças e adolescentes chegaram aos oito Conselhos Tutelares da Capital, e mais de 1.500 atendimentos foram efetivados. Os dados são do Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia), ativado em 2019. A maior parte das ocorrências foi nas Regionais 5 e 6 - duas das mais pobres da cidade.

No ano passado, denúncias e de atendimentos, juntos, somaram 29.847, de acordo com os dados solicitados pelo Sistema Verdes Mares aos Conselhos Tutelares e enviados pela Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci). A quantidade é quase quatro vezes maior que o total parcial de 2019, o que se justifica pela proposta do Sipia: "sistematizar a demanda dos Conselhos, mapeando as violações e evitando a duplicidade de pessoas atendidas".

A promotora do Ministério Público do Ceará (MPCE), Antonia Lima, explica que o número não representa uma diminuição real das denúncias, mas uma organização mais correta delas. "Desde junho, todos os colegiados passaram a fazer o registro no Sipia. O número alto nem sempre correspondia à realidade, porque a pessoa fazia denúncia no Disque 100, não recebia resultado e fazia novamente por outro canal. Como não era sistematizado, não se identificava que já havia notificação sobre aquela criança. Neste ano, os números são mais reais".

De acordo com a Funci, o pódio de solicitações feitas pela população e dos atendimentos realizados pelos órgãos protetores são pedidos de segunda via de certidão de nascimento, orientações sobre o Projeto Primeiro Passo (jovem aprendiz) e reivindicação de vagas escolares. Entre as demais demandas notificadas, 70% ainda se referem a violações mais graves, que arriscam o físico e o psicológico dos pequenos.

Periferias

A maioria das denúncias, apontam os dados, diz respeito a negligência, violências física e psicológica, maus-tratos, conflito familiar, abuso e violência sexual e ameaça. As queixas são coletadas pelos Conselhos de forma presencial, por telefone, via promotoria de Justiça ou pelo Disque 100, canal nacional de comunicação. Por esse motivo, conforme a Funci, "os Conselhos não possuem números específicos de solicitações/denúncias" por demanda.

Contudo, é possível identificar quais regiões da cidade são mais castigadas pela violação de direitos de meninos e meninas. Entre janeiro e dia 9 deste mês, o Conselho Tutelar V - localizado na Avenida Alanis Maria Laurindo, no bairro Conjunto Ceará - recebeu 3.075 denúncias. O segundo com maior quantidade foi o Conselho VI, com 1.323 notificações; seguido pelo III, com 1.035. O total de atendimentos, porém, é bem mais baixo: foram 115, 93 e 760, respectivamente, em cada unidade.

Apesar de as Regionais 5 e 6 liderarem esse ranking indesejado, são bairros das Regionais I e III os que encabeçam a lista de maiores demandantes: segundo dados enviados pela Funci, Jóquei Clube, Bonsucesso, João XXIII, Henrique Jorge e Autran Nunes (todos Regional III), além de Jardim Iracema e Vila Velha (ambos Regional I), foram os pontos que mais concentraram as solicitações relacionadas ao público infantojuvenil.

Para Adriano Leitinho, titular da 3ª Defensoria Pública da Infância e Juventude, o cenário reflete despreparo para efetivar o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). "Temos uma legislação das mais bonitas e completas no que tange aos direitos fundamentais. Mas o ECA está longe de ser realidade. Os próprios conselheiros não têm conhecimento sobre a rede de proteção. É importante que os Conselhos possam lutar para efetivar esses direitos na prática".

Se de um lado as violências mais graves e permanentes são os abusos físicos e sexuais, do outro os contextos socioeconômicos as favorecem. "Vivenciamos uma problemática de pobreza extrema em Fortaleza, e grande parte advém da falta e da ausência de políticas públicas. Há um ciclo de violências sociais que a criança desenvolve, que precisa ser quebrado para que elas não cheguem a ser abandonadas na rua, em mendicância, sendo alvos fáceis para exploração e uso de drogas. Não adianta cuidar da criança e não de quem cuida", alerta o defensor público.

Outro problema, porém, se esconde atrás das rendas mais altas, como alerta a promotora Antonia Lima. "A violência é uma condição inata do ser humano. O que acontece nos bairros de classe média e alta é que as denúncias não são registradas. A violência psicológica é muito alta, nessa sociedade violenta, autoritária, patriarcal. Quem mais viola os direitos das crianças e adolescentes são as famílias e o entorno delas", lamenta. "É preciso ampliar a prevenção, o número de Conselhos e garantir decisões colegiadas entre eles", destaca a promotora.

Ampliação

A necessidade de mais Conselhos para dar conta da demanda - já que é dos conselheiros a tarefa de visitar as famílias, escolas e instituições frequentadas pela vítima - é reforçada por Eulógio Neto, presidente da Associação dos Conselheiros, ex-Conselheiros Tutelares e Suplentes do Ceará (Acontesce). "A cada 100 mil habitantes, deve haver um Conselho. Fortaleza deveria ter no mínimo 25. Até março do próximo ano, segundo a Prefeitura, serão mais dois, e o déficit continua", pontua, frisando como exemplo a "sobrecarga" do Conselho V - que atende 21 bairros.

"Ele abrange uma região demográfica de IDH muito baixo, que inclui Bom Jardim, Conjunto Ceará e Genibaú. Há necessidade de pelo menos mais uma unidade ali dentro, é uma demanda muito densa, assim como na Grande Messejana e na Barra do Ceará. Às vezes os crimes só viram notícias quando são gritantes, mas os Conselhos estão lotados deles todos os dias", conclui o presidente da Acontesce.

Para Bruno de Sousa, assessor técnico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), a grande quantidade de denúncias de violações em Fortaleza - em média, são mais de 600 por mês - revela "um afastamento da proteção integral". "É um enfraquecimento das políticas públicas, essencialmente as de prevenção da violência, e das de assistência social e educação. Isso faz com que as violações aumentem, demandando mais da rede de proteção. De um lado, há precarização das políticas; do outro, os desafios da rede para dar conta. A tendência é que as dificuldades aumentem", analisa.

A reportagem solicitou entrevista com representante do colegiado dos Conselhos, mas ninguém quis se pronunciar até o fechamento desta edição.

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