Nem novo nem normal

Máscaras são como alerta diário dizendo em letras garrafais que não, não há nada normal

Escrito por Ana Beatriz Farias , metro@svm.com.br
Legenda: Para alguns, o tempo já abre lá fora
Foto: Camila Lima

É curioso isso de "novo normal", esse termo estabelecido por alguém cuja-identidade-não-se-sabe e que, de repente, se difundiu como sinônimo dos tempos caóticos que estamos enfrentando. Até entendo a necessidade desta definição, quase regulamentar, que abriga a série de normas necessárias para que os atores da sociedade possam, aos poucos, voltar aos seus lugares. Mas é que, sinceramente, pra mim, por enquanto, não dá.

Primeiro, porque eu, tal como você, nunca tinha vivenciado um vírus desconhecido arrastar consigo tantas histórias, interrompendo amores, sonhos e vidas ao redor do mundo. De tão contagioso, as despedidas foram e são sem adeus. Como, então, num planeta em que ainda não há cura certa ou vacina conhecida para a doença que virou tudo de cabeça pra baixo, já se ousa falar em normal?

Isso sem contar uma porção de pequenas coisas que, somadas, tecem nosso hoje de estranhezas. Afinal, não dá para chamar de comum o receio do abraço ou este novo toque de cotovelos que estabelecemos como forma de ninguém parecer tão antipático.

Tampouco tenho eu como normalizar a saudade dos meus avós, que moram no quarteirão seguinte ao meu e que só posso ver meio de longe, sem o aperto, o carinho e o dengo que, de tudo, são o que mais me faz falta. Isso pra não falar no receio meio culpado que brota na reunião de alguns poucos amigos sem ser convidado. E na saudade que a gente tem de ver os sorrisos por detrás das máscaras.

Ah, as máscaras! Elas, tão presentes quanto imprescindíveis, são como um alerta diário, espalhado por todos os cantos da cidade, dizendo em letras garrafais que não, não há nada normal.

De vez em quando, mesmo tendo estado na rua durante todo esse tempo pandêmico (pela natureza do meu ofício), eu me pego assustada, com uma sensação de habitar alguma ficção distópica, ao olhar ao redor e ver, em toda parte, os equipamentos de proteção individual que cobrem meio rosto de cada indivíduo. Mais estranho que isso, hoje, só mesmo olhar para o entorno e ver as pessoas caminhando livremente sem a máscara. Aí, já é loucura total.

Até o que está, aos poucos, em processo de normalização, tem longo caminho pela frente até alcançar este objetivo. As missas, que tanto me fizeram falta, por exemplo, já voltaram a acontecer. Mas os bancos da Igreja de Fátima, o coração da Avenida 13 de Maio, nunca estiveram tão vazios. É o distanciamento que precisa haver e, é claro, a gente entende.

O que não exclui o fato de que fica ali, entre nós, o espaço do quase (normal), mas, preenchido pelo que é Maior, o semi-vazio vira prenúncio de um devir melhor.

Para alguns, o tempo já abre lá fora. O povo do circo, por exemplo, viu subirem as lonas que havia tanto estavam baixas. Reaberto na semana passada, o picadeiro pode funcionar com 35% de sua capacidade. Número que, ao adentrar a lona montada na Avenida Washington Soares, eu pude ver multiplicado. Era a saudade de espetáculo que me fazia chorar, antes mesmo de ver cinco minutos de cena. A escassez de plateia dos meses passados fez com que, ali, entre algumas dezenas, eu sentisse os efeitos potentes do encontro entre artista espectador. A emoção era como que desproporcional, assim como tanta coisa tem sido. Bem fora do que eu conhecia como normal.

Eu poderia citar mais um, dois, três exemplos... Porque assim vem sendo minha coleção de reencontros: imprevisível, intensa e, como já deu pra perceber, anormal. Nesta altura do campeonato, na verdade, confesso que o conceito de normalidade esmaeceu aqui por dentro, quase sumiu. Não sei se houve, mas de certo não há, hoje, um parâmetro universal de conformidade com a norma. E tudo bem. Sabe do que mais? A tal expressão da moda, da qual comecei falando, não é toda de se jogar fora.

Fiquemos, então, com a parte do "novo". Neste eu acredito e sei que virá, porque sempre vem.

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