Mulheres ditam trajetórias em nome de equidade e autoafirmação

Aprender a ler em plena "quarta idade"; mudar de nome e adequar gênero na segunda década de vida; pautar existência na luta pelo direito à cidade - cearenses mostram que decidir ser o que quiserem transcende o tempo

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Ana Flávia Sampaio, 24 anos, coloca como marcos de vida seu processo de aceitação como mulher trans e a retificação dos documentos
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Foi o machismo que aprisionou Maria do Socorro, durante 83 anos, na cela do analfabetismo. Foi a transfobia que talhou a identidade de Ana Flávia por duas décadas. Foi a desigualdade socioespacial de Fortaleza que expôs Lany Maria, desde sempre, às faltas que sufocam a periferia. Aprender a ler, então, foi liberdade; reconhecer a si, autoafirmação; assumir a luta por equidade, parte do DNA. Quebrar estruturas que subjugam e oprimem foi - e é - ser mulher.

Viver sob o gênero feminino é ter de aprender, cedo ou depois (nunca é tarde), a se livrar de múltiplas amarras. Com o tempo se aprende que ser mulher é possuir não só o próprio corpo, mas a mente, a alma. O tempo. E administrá-los como quiser.

Maria do Socorro Oliveira, 87, escolheu cobrir-se com a farda da rede municipal de ensino aos 83 anos. Decidiu gastar as noites de segunda a sexta-feira, "sem falta!", aprendendo a juntar as letras para compor os capítulos finais de sua história.

Os iniciais foram ditados pelas figuras masculinas que a cercearam: primeiro o pai, depois o marido. "Meu pai? A gente tinha era que trabalhar no roçado e tratando de animal, lá na Serra da Meruoca, pra ajudar ele. Quando vim pra cá, foi pra trabalhar nas casas. Não podia estudar. No dia de me casar, só faltei morrer de vergonha: porque meu marido sabia ler e escrever, e eu fui botar o dedo", relembra, se referindo à assinatura por meio de impressão digital - que selou não só o matrimônio, mas uma renovação da sentença que a restringia do letramento.

Legenda: Maria do Socorro, 83 anos, viveu sob o machismo durante a vida e só há quatro anos pôde estudar
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Ao matricular os filhos na Escola Municipal José de Alencar, no bairro Jardim Iracema, dona Maria recebeu o convite para ingressar em uma das turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) - mas só pôde aceitar muito tempo depois. "Meu marido dizia 'não, Maria, tem que ficar é aqui mais as crianças, cuidar do comércio aqui fora'. Fiquei triste, mas não falei mais. Só que quando ele faleceu, eu vim." Em 2020, ela completa quatro anos como estudante da instituição, com o mesmo brilho nos olhos do primeiro dia em que vestiu a farda e saiu com os livros embaixo do braço, rumo às aulas.

"Me senti muito feliz. Que alegria é a gente não saber fazer o nome da gente, e depois já conseguir ver as letras, dizer os nomes", empolga-se Maria - cuja "força de vontade", como ela mesma diz, dribla todos os dias a perda de memória causada por um traumatismo craniano que sofreu. "Eu quase não vinha mais estudar, ficava triste porque não me lembrava mais das coisas. Mas os próprios alunos tudim me dá valor. Eu não tenho vergonha de jeito nenhum, não tô estudando porque quero trabalho nem dinheiro. Tô estudando porque tenho vontade. Meu maior sonho é de aprender", diz, com a sabedoria da experiência e uma curiosidade que transcende o tempo.

Militância

Além do tempo, aliás, são as vivências e as lutas que libertam as mulheres. "Sou Lany, tenho 20 anos, sou uma mulher negra, lésbica e bolsista no Centro de Defesa da Vida Herbert de Sousa, no eixo de direito à cidade. E sou do Bom Jardim." O território assim, carregado na biografia, diz muito sobre quem nasceu convivendo com a falta - de escola com estrutura e merenda dignas, de segurança pública, de acesso a direitos básicos como o ir e vir - e cresceu determinada a mudá-la.

Desde 2016, então, quando integrou a ocupação do Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Caic) Maria Alves Carioca por estudantes, Lany entendeu: corpo e alma eram prometidos à luta. "Trabalhar e crescer profissionalmente dentro do meu próprio bairro, redesenhar a cidade, olhar pro meu território com afeto, cuidado, defender o direito das pessoas ao saneamento básico, que não chega aqui, e poder lutar por isso com quem me viu crescer e tem influencia em toda a minha vida é muito importante. O que me despertou pra luta foi ver a falta", sentencia.

Na busca por acesso ao espaço público, em todas as esferas, esbarrou com a própria identidade. "Eu luto pelo direito à cidade, e percebo que as mulheres não têm. A gente não pode sair com a roupa que quer, andar a pé sozinha, ir a um bar, ficar numa praça, sem ser incomodada. A cidade não foi feita pra mim enquanto mulher, jovem, negra e LGBT. Então, pensar nesse lugar e ocupá-lo como meu é um desafio e uma teimosia. E é o que me fortalece. A luta me compõe, não consigo me ver fora da militância".

Legenda: Aos 20 anos, Lany milita por direito de ocupar a cidade sem violência
Foto: Foto: Fabiane de Paula

O desejo de uma liberdade plena se estende também ao coletivo. "Não é só sobre ter uma moradia, uma praça iluminada, um transporte público, mas poder andar de mãos dadas com minha namorada na rua e a gente não sofrer violência por isso. Ter direito à cidade é também poder ocupar os espaços com os nossos corpos. Ter o nosso corpo aceito e não violado", alerta Lany.

Direito de ser

O trabalho-missão da jovem do Bom Jardim reverbera em existências como a de Ana Flávia Sampaio, 24, que precisou se impor para se apropriar do próprio tempo de ser. "Quando eu era criança, ouvia que não era pra fazer xixi de cócoras, que era errado brincar de boneca com as minhas irmãs. Eu era impedida de fazer isso, porque menino não podia. Meu processo de aceitação como uma mulher trans só se iniciou aos 20 anos - era uma coisa com a qual eu me reconheci a vida toda, mas era muito impedida, controlada pela minha família", desabafa.

Outro marco dessa alforria foi a retificação dos documentos à identidade de gênero e ao nome corretos, feita em 2018, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que desburocratizou o acesso a esse direito. "Se eu pudesse, não teria trocado minha documentação. Porque me sinto uma mulher, e continuaria sendo a mesma pessoa. Mas tem gente muito preconceituosa, que você tem que esfregar um papel na cara delas para te respeitarem", critica.

Apesar de achar que a transição "poderia ter se iniciado mais cedo", Ana Flávia se sente plena ao vivenciar o 8 de março - e todos os outros dias - exercendo o direito de ser. "Hoje, como mulher, dona da minha vida, não preciso afirmar essa feminilidade sobre a qual nós somos tão cobradas. Me vejo com liberdade de poder me expressar com o meu corpo como eu bem quero, sem essa preocupação. Eu queria muito deixar registrado que as mulheres são donas do seu tempo e de si mesmas: me sinto muito bem na liberdade que eu tenho", finaliza ela.

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