Meu eu Pirambu

Escrito por Cadu Freitas , carlos.freitas@svm.com.br

Com a cueca marrom surrada, de cor já desgastada pelo tempo, e uma blusa velha do flamengo agarrada ao peito, o pivete corre. Ele sai como quem parece ser levado pelo vento da Praia do Pocim. Não sei se é a magreza que facilita o deslocamento ou a sensação de liberdade, que o leva quase voando pelo chão quente de um asfalto, há muito, já batido. Não dá para ver com exatidão aonde ele vai, mas de onde vem, ninguém confunde.

Entre vielas e becos, pisando com a chinela cuja parte do calcanhar já cedeu, ele corre. Os pedaços de pedra que insistem em atrapalhar o voo, atrás do pé, não o impedem de jeito nenhum. Ele nasceu ali, conhece cada pedacinho de areia fofa e até lembra onde o asfalto mais dói. Já escorregou na esquina onde passa o ônibus, nas ruelas perto da praia, enquanto corria escondido dos amigos-irmãos que fingiam não vê-lo.

Correndo, ele nem sabe se está se deslocando de verdade; a sensação de ter saído de casa para mais uma noite de brincadeiras com os amigos não o deixava pensar em outra coisa. Era só vento no rosto e um sorriso que mal dava para contar quantos dentes apareciam. Na descida da igreja, a velocidade maior parecia até transformá-lo, por um momento, no Super Flash. Ele sente isso, mas de super-herói, ele não tem nada.

Naquele local, no qual todo mundo que chega se sente inseguro, ele fica melhor. Lá é como um refúgio. É onde ele vive, ué, correndo entre uma esquina e outra para pegar o busão que leva até a escola.

Ele para por um momento, não mais que dois.

Olha ao redor e percebe que o universo não é muito maior do que o espaço inscrito na janela do seu quarto. Por ela, o mar é tão grande, infinito até. Bem que o mundo todo poderia ser daquele tamanho...

Então, ele viaja pelo imaginário do local que o construiu. Entre os segundos, vêm e vão histórias de um momento não tão longínquo. A corrida até a esquina de casa tem que ser rápida. Na banqueta do jogo do bicho, era preciso chegar antes que a extração das 14h encerrasse. "Bota dois no galo e três no cachorro". A recompensa pela velocidade: uma rodada de fliperama com os 0,10 centavos dados pela avó.

"Eduardo!"

Olhos atentos na tela, ouvidos na rua. Enquanto a mãe o chama, a maçaneta do jogo parece ter pregado na sua mão. Não há o que fazer. Ele corre mais uma vez, mas ninguém mais o chama. Ele para.

Estático, ele se dá conta do percurso. Correu, correu e pousou no recanto das memórias. As brincadeiras de infância subiram à cabeça como se ele fosse capaz de, naquele lugar interno de si, refazê-las.

Lembrar para ele é fazer reviver a criança que corria pelo perímetro da Marcílio Dias. Naquela rua e naquele bairro, ele se fez criança, adolescente, adulto... E voou - não correndo de lá, como quem tenta fugir de um mau presságio.

O outrora pivete voou já homem. Ainda assim, pensa no que está ao seu redor e escuta, dentro de si, que ali é um espaço seu. Parado, ele continua flanando pelas memórias do passado e percebe que, enquanto buscava diversão e corria por entre becos e vielas conhecidas, encontrava a si mesmo.

Ele olha para baixo. A cueca desgastada já não se encontra mais ali, a camisa do flamengo deve ter ficado em algum baú de ontem. Aquele chão batido está cada vez mais distante. Mas os pés, que guardam as cicatrizes da criança que fora, continuam lá.

Aqui.

Aquele pivete, lá de trás, sou eu.

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