Jangadeiros, homens de fé

Escrito por Susy Costa , susy.costa@verdesmares.com.br
Legenda: Seja na atividade diária ou competindo, sempre há a crença no divino.
Foto: Foto: Arquivo do Diário do Nordeste

Desde quando passei a morar perto do mar, as jangadas exercem um grande fascínio em mim. Sempre me intrigou como essa engenhosa embarcação de madeira, de vela triangular, navega por verdes mares, abriga homens na curvatura entre madeiras e se torna meio de vida de muitos pescadores do litoral cearense.

E pensar que por esse litoral viveu Chico da Matilde, o herói brasileiro conhecido por Dragão do Mar, que se recusou embarcar escravos em um navio para serem vendidos no Rio de Janeiro pelos idos de 1911. Chefe dos jangadeiros, disse a famosa frase: "Aqui do porto do Ceará não saem mais escravos". Essas força e resistência parecem seguir envergadas nos seis paus da jangada.

Em Fortaleza, perto do porto onde antes embarcavam escravos, as jangadas têm um ancoradouro especial, a Praia do Mucuripe. Cantada em versos e prosa, essa praia ancora esses barcos de velas coloridas e nomes sugestivos em areia firme e na beirinha do mar. Todo esse cenário é localizado estrategicamente em frente à Capelinha de São Pedro, padroeiro dos pescadores, cuja data foi celebrada ontem, 29 de junho, fechando o festivo mês das festas de santos, um dos períodos mais alegres da região Nordeste.

Além da poesia das formas e da beleza da história, o que também me desperta a curiosidade nas jangadas, são os nomes pintados nas embarcações. Elas são batizadas com nomes de mulheres, filhos, amores perdidos, expõem saudade... Mas a maioria, na minha contagem aleatória de caminhante observadora, percebo que são nomes de santos - expressões religiosas- e salmos. Quem conhece a força do Salmo 23 saberá porque ele é um dos mais recorrentes dos pescadores: "O Senhor é meu pastor e nada me faltará...". Outro trecho do Salmo reza: "Não temerei mal algum pois sei que estás comigo".

Um dos mais lindos nomes que eu acho, está pintado numa pequena jangada amarela, que fica sempre por ali, à vista de todos. Um nome que parece certeza: "Foi Deus..." assim mesmo, com reticências, com ideia de infinito. Vários outros nomes são pintados nas embarcações: "Deus no comando", "Rainha das águas", "Divina providência". Até "São Dimas", o ladrão perdoado por Jesus ainda na cruz, estampa uma jangada... Nunca passei noites em alto mar numa pequena embarcação, mas sinto que, levando um nome poderoso pintado no casco, como amuleto, deve dar sem dúvida, uma sensação de proteção.

Nessa observância de nomes de jangadas, lembrei de uma história épica encantadora. Era década de 1940, quando quatro jangadeiros saíram de Fortaleza e foram parar no Rio de Janeiro. Passaram 61 dias enfrentando as mais terríveis tempestades, numa frágil embarcação, para conversar com o presidente Getúlio Vargas. Enfrentaram o mar para reivindicar direitos trabalhistas dos pescadores. Sim, direitos trabalhistas, o que mostra que as lutas são as mesmas anos após anos. Agora, adivinhe qual nome que a pequena jangada que chegou à capital do Brasil dois meses após a saída do Ceará carregava? São Pedro, um ícone trabalhador do mar da Galileia.

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