Há vias com saída para pessoas em situação de rua

Escrito por Redação ,

Não ter o teto para dormir. Não ter a geladeira para conservar o alimento. Não ter uma rede confortável, uma brisa agradável da janela, banheiro para tomar banho, TV para assistir em uma sala de estar. O 'não ter' ficou apenas nas lembranças e nas histórias contadas por quem viveu as dores da vida nas ruas e hoje deu a volta por cima. Contra as projeções, vencendo as dificuldades e o preconceito, há quem consiga sair da miséria total e da invisibilidade da situação de rua e reconstruir a vida, com vitórias dignas de roteiro de novela das 9.

Eliane: orgulho pela conquista da casa própria. FOTO: LEVI DE FREITAS

Por conta da realidade difícil e do insuficiente número de equipamentos voltados à população de rua, exemplos de superação como o do casal Eliane Evangelista e Carlos Maurício se destacam. Os dois se conheceram quando se abrigavam na Praça Clóvis Beviláqua, mais conhecida como Praça da Bandeira, no Centro de Fortaleza, há um ano. Hoje, vivem em um apartamento na Granja Portugal, com 5 dos 8 filhos. "Agora é pensar sempre em frente", diz, contente, a ex-moradora de rua.

>> Confira a primeira parte da reportagem especial: "Em Fortaleza, 4500 moradores de rua disputam 70 vagas em casas de acolhimento todos os dias"

>> Confira a segunda parte da reportagem especial: "Invisibilidade resulta no aumento constante dos moradores de rua em Fortaleza

Um outro caso de quem viveu nas ruas e hoje conta a história da vitória com orgulho é o do Capitão Silva. O hoje policial militar viveu nas ruas e chegou a morar em um cemitério. "Me conheciam como 'Já morreu'. E pra onde é que vai quem já morreu? Pro cemitério mesmo", conta.

À base do amor, casal vira o jogo

Eliane Evangelista , incapaz de pagar o aluguel da casa onde morava com os 5 filhos -2 já não moram mais com ela-, teve de ir para a rua com as crianças. "Não queria incomodar parente", desabafa. Juntou o que sobrou e, com os filhos, que tinham entre 10 e 20 anos, passou a vagar pela cidade, até chegar à Praça da Bandeira. "Eu queria sair dali. Tem gente que até se acostuma em viver na rua, mas eu não. Sempre quis sair, mudar de vida", garante.


Casal, que antes dormia em barraquinha na praça, esbanja sorrisos ao balançar na rede, na sala da nova casa. FOTO: LEVI DE FREITAS

"A gente dormia na barraca, mas passava o dia no Parque das Crianças (também no Centro), pois lá tinha sombra para os meus filhos", explica Eliane, relembrando os tempos difíceis que ficaram para trás.

Diante das dificuldades, a maior de todas, segundo a ex-moradora de rua, era a manutenção da higiene pessoal. "Ninguém quer deixar um morador de rua usar seu banheiro para tomar banho, fazer necessidades. Isso era o mais difícil. A gente tinha de fazer tudo na praça mesmo", frisa.

Carlos Maurício foi para a rua aos 26 anos de idade. Deixou para trás casa, esposa, e uma filha. Passou 8 anos vagando, em busca de um rumo para sua vida. Em 2012, conheceu Eliane, na Praça da Bandeira. "Nós nos ajudávamos", lembra.

O homem, hoje com 34 anos, teve um grande adversário que o derrubou na ladeira social. Alcoólatra, abdicou do convívio familiar para permanecer com seu vício nas ruas da cidade. E, quem diria, em uma das bebedeiras, conheceu a mulher que mudaria sua vida. "Os 'meninos' faziam a 'intera' (sic) da cachaça e eu ia comprar. Quando voltava, ia beber na Praça, e via a Eliane lá. A gente foi conversando, e aconteceu. E estamos juntos até hoje", diz o Carlos.

Carlos largou o vício no álcool e decidiu se apegar à família. FOTO: LEVI DE FREITAS
 
Do aluguel social para o 'Minha Casa Minha Vida'

Quando a rua parecia ser a única alternativa para a vida do casal e seus filhos, a equipe de abordagem do Centro Pop entrou em ação. "Somos muito gratos ao Centro Pop. Eles nos procuraram na abordagem na Praça e explicaram as coisas como funcionam. Nos encaminharam para o aluguel social e nos ajudaram a conseguir nossa casa pelo Minha Casa Minha Vida", diz o casal, deixando claro o carinho que nutrem pelas pessoas que os acompanharam durante o período mais difícil de suas vidas. "Sempre que vou ao Centro da cidade passo no Centro Pop para falar com meus amigos", garante Eliane.

No apartamento que receberam, Eliane e Carlos têm a obrigação de arcar com o aluguel, que custa R$ 50, e as contas da casa, como energia elétrica e água, além da alimentação. Dos 7 filhos de Eliane, 2 continuam morando com a mãe. A filha de Carlos também foi morar com o casal, e estava formada a família. "Bom ou ruim, mas todo dia tem comida. E em 10 anos, a casa será nossa. Onde é que eu vou alugar uma casa por esse valor e ficar com ela com 10 anos? Quando você vai embora de uma casa, ela é do dono. Aqui o dono é você", fala determinada a mulher.

Eliane, hoje, divide-se entre as tarefas de dona de casa, de mãe e de funcionária do próprio condomínio. "É uma experiência de meio período. Estou trabalhando de vigia, durante a manhã. É por 3 meses, e se gostarem, continuarei. Mas se não, vou atrás de outra coisa. Deus ajuda", diz. Já Carlos, é vigia na feira da Rua José Avelino, na Praia de Iracema
 
E com a franqueza de quem não tem o que temer quanto a julgamentos, o casal pede por mais respeito da sociedade. Mais respeito não para si, mas para seus iguais que vivem o que um dia eles viveram. "A sociedade deve ver o morador de rua como ser humano. Tem muitos que estão ali não por querer, mas por necessidade mesmo, por não ter dinheiro para pagar aluguel, por não ter onde morar", posiciona Eliane.

"A sociedade tem que enxergar melhor o morador de rua. Nem todo mundo é bandido. Tem muita gente querendo sair dali mas não tem oportunidade", defendeu Carlos Maurício.

O anjo da rua
Capitão Silva: de morador do cemitério a oficial militar

José Gonçalves da Silva. Ouvindo assim, o próprio nome sendo dito, o hoje Capitão Silva volta quase 50 anos no tempo para relembrar dos dias em que era chamado apenas por "Já morreu". Era franzino, órfão. Morador de rua. Poderia ter sido apenas mais uma estatística. Foi além. "Não venci. Estou vencendo", afirma, com sua voz calma porém firme, de quem, literalmente, experimentou o pão que o diabo amassou, mas conseguiu dar a volta por cima. Ora, morador de rua, chegando a dormir no cemitério da cidade do Crato, no Cariri, hoje é capitão da Polícia Militar do Ceará, formado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Publicou um livro e já foi homenageado em forma de literatura de cordel. Hoje, como um verdadeiro 'anjo', busca proteger a juventude das drogas, o que considera "um dos maiores problemas sociais do mundo".

Capitão Silva: após sair das ruas, entrou para a Polícia Militar e concluiu graduação em História. FOTO: LEVI DE FREITAS

Capitão Silva faz questão de contar sua história. Todo aprumado, com paletó e gravata, apesar do calor de uma típica manhã cearense, senta no sofá e começa a debulhar sua saga. Na parede da sala, no bairro Antônio Bezerra, em Fortaleza, quadros de sua formatura como historiador. Outro, em preto e branco, dos tempos de fileiras no Exército. Há ainda uma daquelas fotos antigas, um desenho de perfil do pai e da madrasta. Memórias ainda vivas nas palavras de um homem que, contra todas as projeções, voou alto e faz questão de ser usado como exemplo de superação.

Capitão Silva escreveu um livro dando conselhos aos jovens. Na parede, lembranças da turma de História e do pai, falecido. FOTO: LEVI DE FREITAS

Silva nasceu no Crato, na região do Baixio das Palmeiras. Ficou órfão de mãe aos 3 anos. Antes de completar 8 anos, perdeu o pai. Ficou sozinho, foi morar na rua. "Busquei abrigo na porta da igreja de São Francisco, no Crato. Mas veio o vigário e me expulsou. Disse que não poderia ficar ali por ser mendigo", lembra, afirmando depois que não guarda mágoa da igreja que não lhe estendeu a mão. "Ó quem é meu 'padim'", diz, ao tirar do topo de uma estante uma imagem de gesso de Padre Cícero Romão Batista, o 'padim Ciço'.
 
Sem pai, sem mãe, sem igreja, mas com Deus no coração, além da esperança e do desejo de viver. Franzino, pequeno, negro. Não tinha casa, família. Não tinha nome. Só um apelido, 'Já morreu'. E só havia um lugar no Crato onde sabia que poderia encontrar abrigo. O lugar para onde vão os que já morreram. Silva, então 'morto' para a sociedade, buscou abrigo no cemitério da cidade.

Mesmo não recebendo abrigo da Igreja, Silva jamais deixou de lado sua devoção ao Padre Cícero. FOTO: LEVI DE FREITAS

"Falei com o coveiro. Disse que não era menino malino, que só queria um canto pra dormir. Ele conversou e no fim, deixou. Fiquei dormindo lá por 2 anos e 6 meses", lembra.

A vida era dura para o órfão. Mas ele não dava moleza para a vida. Foi lavar carros, engraxar sapatos. Trabalhou de chapeador, borracheiro, vendedor de jornal. E chegou a trabalhar como gari.

Sem ter onde dormir - e já tendo deixado o cemitério - passou a fazer do caminhão do lixo sua cama. "O pessoal fazia hora com a minha cara por eu não ter onde morar mas eu não ligava", frisa, lembrando que "acabava acordando devido às baratas que lá corriam".

Soldado da rua: o preconceito vem de cima

O tempo passou. A criança cresceu e completou 18 anos. E o militarismo entrou na vida do jovem morador de rua como uma chance de mudança. "Meu objetivo era o de conseguir organizar minha vida e sair daquela pobreza absoluta", cita, no livro que escreveu "Transformando vidas: não às drogas", onde conta partes de sua história e dá conselhos para a juventude.

Ao completar 18 anos, se alistou e foi prestar o Serviço Militar. Embora servindo ao Exército, o agora soldado Silva ainda não tinha onde morar. Era militar durante o dia e morador de rua à noite. Mais um capítulo difícil na vida do jovem cratense.

Silva se viu acoado pelo preconceito de um oficial e, por pouco, não foi expulso da corporação por não ter onde dormir nem o que comer. "Uma vez, um oficial me viu pedindo comida em um restaurante. Ele me chamou e disse que, se eu recebesse a comida, eu comesse e fosse embora, mas que no dia seguinte, eu seria retirado das fileiras pois não poderia haver mendigo no Exército. Eu fiquei revoltado, não comi nem dormi aquela noite. No dia seguinte, as fileiras foram formadas, e o oficial me chamou e informou que eu estava sendo retirado por aquele motivo. Um companheiro pediu a palavra e disse que todos ali sabiam da minha situação. Ele sugeriu que eu não fosse desligado, que eu era gente boa e precisava de ajuda. O oficial pensou, e me deixou permanecer", relembra, afirmando que também não guarda nenhuma mágoa do preconceito que sofreu nas fileiras do Exército. "Naquele tempo, era daquele jeito mesmo. Os militares não tinham culpa. Foram infelizes. Não tinham formação", defende.

A volta por cima: sem temer os desafios

O período no Exército passou, mas o desejo de defender a sociedade não. Excluído, sofrido, mas nem por isso revoltado ou desiludido. Silva, aos 19 anos, enfim deixava as ruas. Conseguiu trabalhar em um hotel, como vigia, e lá passou a morar. Enfim, tinha um teto sob sua cabeça durante a noite.

No hotel, conheceu um empresário, que o convidou a morar em Fortaleza. Após relutar, Silva decidiu viajar à Capital do Estado. Na cidade, trabalhou como cobrador de ônibus. Estudava à noite, buscando a melhoria de vida que poderia vir.

Foi quando surgiu a Polícia Militar na vida de Silva.

O ano era 1979. O agora ex-morador de rua resolveu prestar concurso para a Polícia Militar. E foi aprovado. Era agora, novamente, o soldado Silva. Conseguiu, enfim, ter condições de se manter, pagar uma casa, comprar comida. E a zona de conforto, para ele, parecia ser o desafio. Não satisfeito com a patente, fez cursos e foi sendo promovido. Sargento, tenente, até chegar a capitão.

Em 2007, outro desafio: prestou vestibular e foi aprovado para a faculdade de História, na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). E não apenas foi aprovado, como ficou em primeiro lugar no processo seletivo. E concluiu o curso em 2011, transformando a casa onde mora em uma verdadeira sala de troféus, com as fotografias usando a tão almejada beca como ícones do incentivo à busca pelo sonho.

A missão: transformar vidas

Entre uma lembrança e outra, sempre a preocupação com os jovens - sua paixão. Capitão Silva não hesita em repetir aos quatro cantos que é contra as drogas, e que quer ajudar o máximo de pessoas que puder a sair do vício. Afirma categoricamente que, embora na rua, jamais experimentou qualquer tipo de entorpecente. "Eu sabia que droga matava. E eu queria viver. Então, por qual motivo eu ia me envolver com aquilo?", pontua.

O ano agora é 2013. Aos 56 anos, o historiador e capitão Silva é coordenador disciplinar do Colégio da Polícia Militar, em Fortaleza. "Faço o papel do pai e da mãe na vida social das crianças. O mundo não transforma a educação, mas a educação é que transforma o mundo", versa, garantindo que é bem querido pelos estudantes. "Todos os alunos me adoram", gaba-se.

Silva ganhou homenagem em literatura de cordel. FOTO: LEVI DE FREITAS

Hoje, o capitão ex-morador de rua divide suas experiências de vida através de palestras que ministra no próprio colégio ou em outros eventos, quando é convidado. "Tenho muito orgulho pelo que vivi. Não sou um vencedor. Estou vencendo. E minha vitória está em Deus. Me orgulho, por poder passar minha história de vida para as pessoas", encerra. 

Mostrando as fotografias na parede, o capitão chora. Aponta para a imagem em preto e branco, de quando servia o Exército. Depois, mostra as fotos da formatura. E não segura as lágrimas. "Essa é a história da minha vida. De quem não teve nada na vida. E me emociono com o que conto da minha vida. Não sou um computador, então, fico emocionado", diz, com os olhos marejados.

Silva, o capitão historiador, é pai de 3 filhas e avô de 4 netos. E não deixou o jeitão simples, de quem um dia não teve nada. Porta de casa aberta, convidando quem quiser entrar para uma overdose de histórias de superação. "Não queira passar o que eu passei na vida. Fui abandonado, discriminado, ao relento da vida, mas estou aqui, vivo e são. E digo uma coisa: não sou um vencedor. Estou vencendo", repete o bordão, firme na certeza de que ainda há muito o que conquistar. 

Confira vídeo com Capitão Silva contando um pouco mais de sua história:

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