Fortaleza da janela

Escrito por Renato Bezerra , renato.bezerra@svm.com.br
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Foto: Márcio Dornelles

A virada para 2020 foi inédita. Na praia de Iracema, em meio a uma grande festa, cercado de amigos e grandes desejos para o novo ciclo. Minha primeira vez no Réveillon de Fortaleza não foi por acaso, e sim, simbólico. Este era para ser um ano diferente, com o máximo de aproveitamento da cidade como meta pessoal.

Cinco meses depois e uma certeza: de tão diferente, o ano está como nunca poderia cogitar, nem no pior dos pensamentos. A pandemia do novo coronavírus chegou sem pedir licença. De supetão, arrebatou o mundo inteiro, nos obrigando a severas medidas de restrição e prevenção.

Para a maioria das pessoas, Fortaleza, hoje, está ao alcance apenas por varandas e janelas. Assim como para mim, que me vejo, forçadamente, sentindo a cidade em saudosas lembranças, ou em percepções antes quase invisíveis na metrópole desenfreada.

Como o forte azul do céu em dias dominados pelo Astro-Rei. Ou seu vermelho alaranjado em sua chegada e despedida, que dia desses veio como um grande presente. O cheiro da chuva, o ressoar do vento, ou a natureza insistente ao redor do concreto nas adjacências dos bairros Meireles e Aldeota, tudo me soa mais vivo, existente.

Em época de recolhida e silêncio consequente, os sons também são vivencia. A exemplo do solitário vendedor de chegadinha, que no tocar de seu triângulo, resiste no ofício de todas as tardes, em meio a uma Carolina Sucupira vazia, mantendo a esperança por fregueses.

Ou no bater das asas pesadas de pássaros maiores, como os pombos, que por vezes me tomam de susto em momentos mais desprevenidos. E até mesmo o repetido ecoar de sirenes das ambulâncias, que me reporta à cruel e triste realidade.

Se antes, praias, parques, bares, festas, além de encontros com familiares e amigos, me davam a certeza de uma Fortaleza forte e vibrante, hoje tento me aclimar a uma cidade deveras pulsante apenas nas recordações, ou nas hashtags TBT do Instagram.

Não é a mesma coisa, mas é assim que tem que ser, recluso, por hora. A loucura não veio, pelo menos não em sua forma mais pura e genuína. O companheiro de quarentena - amigo de grande valor afetivo, que me cedeu morada nesse tempo incontável de incertezas - tem mérito por isso. Sanidade não garantida se sozinho por completo estivesse.

E assim os dias seguem, em uma Fortaleza aprisionada, com dias cada vez mais desafiadores para mim. E mesmo com a divisão de horas entre o trabalho remoto e as tentativas em vão de refúgio nos livros e filmes, é da varanda do apartamento 604 que brota meu suspiro mais genuíno.

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