Enem: com nova data, alunos não terão tempo de recuperar perdas

Estudantes das redes pública e privada apontam que cronograma do MEC não atende às necessidades de aprendizagem; especialistas em educação reprovam data e avaliam que reposição de aulas presenciais é fundamental

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: Maioria dos alunos considera que a época ideal para a prova seria maio. MEC não aceitou resultado da consulta pública
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O avanço da pandemia no Ceará mudou planos e atrapalhou sonhos de muitos, sobretudo daqueles que fariam, justamente em 2020, a prova mais importante da trajetória escolar: o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Antes previsto para novembro, o teste tem, agora, novas datas definidas pelo Ministério da Educação (MEC): provas impressas serão aplicadas em 17 e 24 de janeiro; e a versão digital, em 31 de janeiro e 7 de fevereiro. Estudantes e especialistas em educação alertam que o período é insuficiente para preparação.

O Ceará é o 6º do Brasil com maior número de inscritos no Enem 2020: ao todo, são 325.706 candidatos, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O número é 10,4% maior que o registrado em 2019, quando 294.992 se inscreveram para a prova. Neste ano, no âmbito regional, o Estado é o 2º do Nordeste com maior quantidade de inscrições, tanto na versão impressa, com 322.594 candidatos; como na digital, que contabilizou 3.112 inscritos cearenses.

Entre os dígitos, está a estudante Lívia Menezes, 17, para quem a escolha da nova data do exame não está alinhada com o interesse da maioria dos alunos. Cursando o último ano do ensino médio em uma escola da rede pública estadual do Ceará, ela e os colegas de turma ficaram surpresos com o fato de o MEC ter "desprezado" o resultado de enquete feita com inscritos para sondar a melhor data para a realização das provas.

"Reunimos todo mundo da nossa sala para conversar sobre a votação. Em conjunto, decidimos escolher maio, porque aumentaria nosso tempo de preparação. O Ministério optou por janeiro. De que adiantou, então, toda a mobilização para pesquisa?", questiona Lívia.

O ensino a distância, alternativa adotada pela escola de Lívia para manter as aulas mesmo durante a pandemia, deixou "tudo mais cansativo". A falta do contato próximo com o professor, para ela, dificultou a absorção do conteúdo, aumentando a insegurança quanto ao aprendizado. "É muita atividade. Não conseguimos tirar dúvida no 'ao vivo'. Isso abala a nossa confiança, porque não conseguimos dar conta. Eu quero cursar faculdade de Nutrição, mas não me sinto preparada para o Enem. Nada compensa a aula presencial", confessa.

Insuficiente

Também estudante do 3º ano do ensino médio, mas da rede privada, Clarice Laides, 17, endossa os receios de Lívia. "Não vejo como fazer Enem no começo do ano enquanto permanecerem as aulas virtuais. Tenho um pouco de déficit de atenção e a adaptação está sendo a pior parte. Os professores não tinham nenhuma preparação para o ensino a distância. Eles estão se esforçando, mas é complicado", lamenta Clarice.

A estudante, que pretende conseguir uma vaga no curso de Jornalismo, também votou a favor de a aplicação do Enem ser em maio, e considera que o novo cronograma "não ampara a todos". "Votei assim porque pensei no geral, e não somente em mim. Mesmo que as minhas aulas estejam sendo cansativas, tem gente na escola pública que não teve a mesma preparação e vai fazer a mesma prova. Não terá tempo para aula. E não é justo com os alunos nessa situação", reconhece Clarice.

Sem perspectiva de retorno à rotina presencial, ambas as estudantes encontram apoio nos amigos para lidar com as incertezas, sobretudo após saber que apenas seis meses as separam das 180 questões e da redação do Enem. "Na minha sala, nós compartilhamos resumos e mapas conceituais de forma bem didática, para ajudar quem não entendeu a matéria. Acho que, se não fosse esse suporte dos colegas, estaria sendo bem pior", reflete Lívia Menezes.

Para evitar que os alunos perdessem conteúdo, o professor de matemática Fábio Frota, que leciona no Academia Enem, curso gratuito ofertado pela Prefeitura de Fortaleza, precisou aumentar a carga horária de aulas.

"Antes da pandemia, quando o curso era presencial, as aulas aconteciam somente nos fins de semana. Agora, estamos três vezes por semana na internet e, com a ajuda de parceiros, na televisão também", relata.

A iniciativa recebe, em sua maioria, estudantes da rede pública da Capital. Fábio avalia que, com a prova acontecendo em janeiro, os pré-vestibulandos fora da rede privada podem ter um prejuízo equivalente a dois meses de aula, mesmo com reforço. "Caso a gente volte em outubro, ainda ficaria um espaço de tempo sem conteúdo. Se a prova fosse em maio, teríamos mais tempo de preparação. As aulas virtuais são boas, estamos nos esforçando muito, mas nem sempre alcançamos todo mundo", conclui o docente.

Desigualdades

O professor reforça que os impactos serão sentidos por todos os estudantes, mas acredita que a política de cotas reservada aos oriundos da rede pública pode "suavizar" as diferenças. "Há um prejuízo, claro, mas os alunos da escola pública concorrem entre eles, enquanto os da rede privada concorrem entre si. Isso suaviza essa desigualdade, já que a rede privada teve mais acesso às aulas virtuais".

Em entrevista ao Diário do Nordeste, no último dia 4, Ivan Gontijo, especialista em Políticas Educacionais e coordenador de projetos do Todos Pela Educação, adiantou que era importante uma pactuação sobre a nova data "o mais rápido possível", mas frisou os prejuízos do cenário instável aos alunos. "Os estudantes mais vulneráveis estão sendo duplamente prejudicados: não conseguem cumprir o ensino médio, por conta do modelo remoto, e além disso vão ser prejudicados no Enem", diz Gontijo. Os efeitos da desigualdade socioeconômica também são destacados por Marco Aurélio de Patrício, doutor em Educação, como alargadores importantes do acesso ao ensino superior, principalmente num cenário pandêmico.

"Com certeza, o aluno da rede privada foi prejudicado, mas bem menos, porque tem acesso à tecnologia, as escolas têm agilidade para colocar aula remota e os professores têm formação para dá-las de boa maneira. O aluno de escola pública só tem a escola, não tem outro recurso", reforça.

Para o especialista, repor e completar a carga horária de 200 dias de aulas presenciais é medida "imprescindível" para mitigar os prejuízos na aprendizagem.

"Tendo a escola como única aliada pra passar no Enem, o estudante da rede pública precisa estar lá pelo tempo suficiente para se preparar. E esse tempo não é menos do que maio do próximo ano. Para as instituições de ensino, isso atrapalha o cronograma, mas gradativamente se corrigiria o calendário, para que houvesse menos desigualdade nessa competição", conclui.

Em nota, a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) informa que, "dos 98 mil matriculados no 3º ano do ensino médio, 99% estão inscritos no Enem". Durante o período de distanciamento social imposto pela Covid-19, "cada unidade de ensino construiu um Plano de Atividades Domiciliares, para que os estudantes cumpram a carga horária do trabalho escolar em casa. Assim, configuram como dia letivo e englobam toda a rede", afirma a Pasta.

Programas de estudos antes ofertados presencialmente também foram adaptados ao contexto atual, como o "Enem Não Tira Férias", voltado a candidatos inscritos. "Em 2020, acontece até 31 de julho, e a programação será realizada de forma virtual, com aulões online em formato de lives e webinars, contemplando as quatro áreas de conhecimento abordadas no Exame e a prática da escrita de redação entre os alunos", finaliza a Secretaria de Educação.

“Evasão deve ser fator mais preocupante no dia da prova”, diz chefe do escritório do Unicef em Fortaleza 

A saúde mental e o preparo para a redação são alguns dos pontos críticos para os alunos que passarão pelas provas do próximo Enem, conforme avalia Rui Aguiar, chefe do escritório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês) em Fortaleza. Confira a mini-entrevista: 

Na sua análise, a decisão pelas novas datas do Enem foi acertada? É tempo suficiente de preparação para os estudantes? 

O adiamento era necessário e não podemos descartar um novo ajuste de data face à situação de crise sanitária vivida pelo país. Esta decisão precisa ser complementada com medidas emergenciais para garantir que alunos da rede pública tenham acesso a programas de acompanhamento pedagógico e a pacotes de dados de internet para terem as condições mínimas de participação em um processo extremamente competitivo e cujas desigualdades nas condições de preparação são decisivas no resultado do exame.  

Quais os maiores prejuízos da pandemia aos alunos e como devem repercutir nas provas? 

O maior prejuízo está no déficit de aprendizagem de estudantes da escola pública que estão sem acesso a aulas remotas ou a programas compensatórios criados pelas redes públicas para garantir a preparação para o exame. Um fator determinante para isso é, por exemplo, a inexistência de computador em casa, telefone celular e internet, imprescindíveis para o acompanhamento remoto ou mesmo para o prosseguimento de estudos individuais, como é o caso de milhares de jovens que já concluíram o ensino médio e estão estudando em casa por conta própria.  

Como as escolas, sobretudo públicas, devem se preparar para dar suporte a eles? O que deve ser mais trabalhado a fim de mitigar essas perdas? 

Um dos pontos críticos da preparação é a redação, que exige um esforço adicional das escolas no terceiro ano. Uma boa prática seria a de se estabelecer um programa pedagógico de apoio remoto à produção de redações pelos alunos da rede pública, com suporte e revisão dos professores da área. Outro aspecto importante está relacionado com a saúde mental, pois a situação de ansiedade típica do Enem está sendo bastante agravada pela pandemia. Um terceiro aspecto diz respeito ao acesso a materiais didáticos e complementares, muitos deles existentes em bibliotecas públicas ou escolares que estão fechadas e poderiam criar mecanismos de empréstimo a estudantes do terceiro ano do ensino médio, por exemplo.  

O nível desta edição do Enem deve ser mais baixo, na sua visão? 

O Enem é construído sobre a Teoria da Resposta ao Item, que é um algoritmo bastante complexo, mas que pode ser programado e adequado aos objetivos do exame. O fator mais preocupante deverá ser mesmo a evasão no dia da prova. 

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