Em meio a desafios, aplicativo visa facilitar adoções no Ceará

Ferramenta dá visibilidade para crianças e adolescentes disponíveis para adoção com mais de 7 anos, que tenham irmãos ou apresentem alguma doença. Os jovens integram o grupo de adoções necessárias

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@svm.com.br
Legenda: Crianças instaladas em abrigo de Fortaleza, à espera de adoção por uma família
Foto: FOTO: HELENE SANTOS

Embora admiráveis, a beleza e o afeto por trás do gesto da adoção não chegam igualmente a todas as crianças e jovens à espera de uma família. Padrões pré-estabelecidos restringem com frequência as oportunidades disponíveis para adoção em unidades de acolhimento. Tendo essa realidade em mente, o aplicativo A.Dot foi desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), e deve chegar ao Ceará em maio, para facilitar a construção de famílias com jovens a partir de sete anos, que tenham irmãos ou apresentem alguma doença.

A ferramenta dá visibilidade ao grupo de adoções necessárias, para o qual há menos pretendentes. No aplicativo, que poderá ser acessado por pessoas interessadas em adotar, serão disponibilizados dados pessoais, vídeos e fotos das crianças e adolescentes, a fim de garantir-lhes acesso e, assim, facilitar a busca por uma família.

No Ceará, existem atualmente 85 crianças com esse perfil, de acordo com Deusimar Rodrigues, analista judiciário da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional do Tribunal de Justiça do Ceará (Cejai). "A maioria dos pretendentes deseja adotar crianças de até 7 ou, no máximo, 9 anos de idade. Crianças de 10 anos pra frente sempre ficam nos abrigos até os 18 anos, quando são obrigadas a sair", explica.

Ele revela que o projeto foi apresentado às equipes responsáveis no dia 28 de fevereiro, e todos concordaram com a adesão. "Estamos só aguardando a formalização do convênio do TJCE com o Tribunal do Paraná para fazer provimento, publicar e começar as gravações. A previsão é iniciar tudo em maio". Em cada comarca, o juiz responsável pelo processo de adoção deverá autorizar quais crianças poderão participar do projeto.

'Janela adotiva'

Para terem suas imagens publicadas, as crianças também precisam concordar, e o interesse será atestado durante entrevista com profissional competente. Nos vídeos, as crianças poderão se apresentar e falar sobre seus interesses. Uma vez editado e finalizado, o material passa pela avaliação do juiz e, se aprovado, é inserido no aplicativo. As informações da criança também ficam disponíveis aos pretendentes habilitados. "Com isso, elas vão poder se expressar, dizer quem são, do que gostam", diz Rodrigues.

"A nossa expectativa é que o aplicativo faça no Ceará o que tem feito no Paraná. Em um ano, o Estado teve 7 adoções concluídas e tem 20 em fase de estudo", destaca. Os estados de Minas Gerais e Mato Grosso também já aderiram.

Apesar de os adotantes voltarem-se preferencialmente para a chamada 'janela adotiva' - crianças com idade entre 0 e 7 anos -, o analista jurídico acredita que é possível que alguns pretendentes mudem de ideia ao se depararem com as fotos e vídeos dos jovens no aplicativo A.Dot. Enquanto neste intervalo há mais adotantes que crianças, fora da 'janela' a situação se inverte.

"Às vezes o pretendente quer adotar e, no seu inconsciente, ele quer um filho. Só que quando ele traz isso pra consciência, ele se depara com os limites, os padrões que a sociedade impõe. Criança branca, saudável, sem irmãos. Mas, de repente, quando ele bate o olho em uma criança que ele nem esperava adotar, às vezes o coração se conecta com aquela criança e ocorre a adoção", descreve.

A proposta do aplicativo é comemorada. No entanto, inspira reflexões acerca dos desafios para a adoção no Ceará. O promotor de Justiça Dairton Costa explica que o Estado tem, em média, 1.000 crianças e adolescentes em unidades de acolhimento. Ele toma Fortaleza como exemplo, destacando que a cidade abriga 380 desse total, e apenas 76 destes jovens acolhidos estão disponíveis para adoção, ou seja, com seus processos resolvidos.

Desvinculação

Um dos principais desafios no Estado, segundo ele, é a destituição do poder familiar. "Isso é a 'desvinculação legal por sentença' da criança a sua família de origem. Se essa 'desvinculação legal' demorar demais e a criança atingir 8 anos, a princípio, ela sairá da janela adotiva e sua adoção ficará dificultada, havendo possibilidade de não ser mais adotada, ou seja, passar o resto de sua vida nos abrigos. Hoje, no Brasil, está demorando em média quatro anos. Na nossa realidade, em Fortaleza, são três", ressalta o promotor.

Ele enfatiza, ainda, que se somente 76 crianças acolhidas em Fortaleza estão disponíveis para adoção, então somente estas poderão aparecer no aplicativo A.Dot. "A ferramenta é excelente. O problema é que está chegando tarde. O que tira a criança do abrigo é visibilidade. Elas são invisibilizadas, escondidas para os pretendentes pelo próprio acolhimento. A intenção é proteger, só que a gente protege tanto que invisibiliza. Elas ficam adultas sem nenhuma possibilidade de autonomia. Crescem sem conhecer uma família, são restritas ao contato comunitário", avalia.

Para Dairton Costa, há de se comemorar um avanço observado no Ceará. Segundo ele, em 2016, o Estado teve somente duas comarcas com registro de adoções de crianças institucionalizadas. Já em 2019, foram 18 comarcas. Ele considera necessário realizar mutirões de conscientização, para que "as redes se sensibilizem com essas crianças para que não percam a chance de serem adotadas".

Na visão de Lucineudo Machado, presidente da Acalanto Fortaleza - Grupo de Apoio à Adoção (GAA) -, a situação de Fortaleza é "um pouco melhor", uma vez que existe uma vara judicial especializada em adoção, e os prazos para habilitação de pretendentes são cumpridos. No entanto, os prazos relacionados à destituição do poder familiar "não estão nem perto do que é desejado".

"Se essa situação é difícil na Capital, na Região Metropolitana piora. E, especificamente no interior do Estado, piora mais ainda. Desde 2018, a Acalanto, em parceria com o Ministério Público do Ceará (MPCE), protagoniza o projeto CNA (Cadastro Nacional de Adoção) Forte, que leva capacitação para os pretendentes no Interior, e para os funcionários das comarcas", detalha Machado.

Segundo ele, o número de adoções pelo CNA nessa região do Ceará é muito pequeno, e o interior representa um gargalo para a adoção no Estado. Dessa forma, o uso do aplicativo em comarcas desta área não alcançaria o potencial desejado.

Espera

"Tem uma demanda anterior aí. Primeiro, deve-se especializar as Varas, depois fazer com que comecem a trabalhar com adoção pelo CNA e, então, entrar nas instituições de acolhimento. Só depois colocaria o aplicativo", diz.

Em relação à destituição de poder familiar, ele avalia que a demora se deve à falta de uma avaliação sistemática dos processos das crianças. É preciso verificar quais são aquelas que não têm condições de retornar à família biológica, respeitando os prazos instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O presidente da Acalanto vivenciou tal realidade no processo de adoção do próprio filho. "O período máximo, que deveria ser cumprido, era de 240 dias para resolver a situação, para entrar em contato com os parentes biológicos. O meu filho esperou por sete anos no acolhimento. É uma situação muito complexa".

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