Comunidades se apropriam e revitalizam espaços públicos

Em locais onde a limpeza urbana não é suficiente, ações simples de moradores repaginam o visual de vias antes tomadas por lixo, transformam os hábitos da região e reforçam sentimento de pertença em bairros periféricos

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: Beira Lagas foi o nome escolhido pelos moradores para a "Beira Mar" da Comunidade do Lagamar
Foto: Fabiane de Paula

O antes e depois do "rosto" da Rua Raimundo Ribeiro não sai da memória da porteira Regineide Escócio, moradora do bairro Autran Nunes desde o primeiro dos 46 anos de vida. Em janeiro deste ano, o cenário era de abandono: lixo, entulho e podas de árvores ocupavam a extensão inteira de dois quarteirões, tornando a permanência no trecho uma missão insalubre, difícil de cumprir. A transformação, porém, veio em fevereiro: com tinta e pincel nas mãos, voluntários capitaneados por Regineide repaginaram completamente o local.

O "lixão" do bairro, segundo relembra a moradora, começou a ser alimentado em meados de 2015, mas a situação piorou após a desativação de uma escola estadual na rua. "Em um dia, os moradores chegaram a contabilizar a retirada de 25 caçambas de lixo só daqui. Eu passava em frente e ficava aquela tristeza em mim. O ponto que chamava atenção no bairro era esse", relata a porteira, que usou a angústia como combustível necessário para solucionar o problema.

O ponto pelo qual o lixo se espalhava corresponde à extensão do muro de uma fábrica, cujo dono precisou de dois meses para ser convencido por Regineide para mudar o cenário. No fim das contas, o empresário não só concordou, como contribuiu com o material necessário para realizar as intervenções.

A Regional III realizou a coleta especial, recolheu todo o lixo depositado no local e fixou pneus ao longo de toda a via para evitar a subida de veículos nas calçadas. Depois disso, Regineide e outra voluntária iniciaram o trabalho de pintura do grande muro e de pequenas construções ao longo do quarteirão. O trabalho foi iniciado em janeiro e finalizado no primeiro dia do Carnaval - um fevereiro inteiro, "debaixo de chuva, sem feriado", dedicado a trazer mais cor também à periferia de Fortaleza. A mudança de visual do bairro ocupou as férias de Regineide inteiras.

Legenda: Regineide dedicou o mês de férias do trabalho inteiro para colocar a mão em pincel e tinta e revitalizar uma rua do bairro onde mora
Foto: Fabiane de Paula

"O que me motivou foi a consciência de que todos nós precisamos cuidar do meio ambiente. Todo tipo de lixo era colocado aqui. Fiz a minha parte como moradora. Por mim, não ficaria nem um papel de bombom na rua"

"O que me motivou foi a consciência de que todos nós precisamos cuidar do meio ambiente. Todo tipo de lixo era colocado aqui. Fiz a minha parte como moradora. Por mim, não ficaria nem um papel de bombom na rua. Se eu tivesse condições de me dedicar somente a isso na vida faria", empolga-se a porteira, relembrando com humor o fato de que um vereador quis estampar o próprio nome na obra feita, mesmo sem ter contribuído com absolutamente nada. "Muita gente disse que não daria certo, mas se enganou. Tá todo mundo satisfeito, foi um tiro certeiro". O que ainda falta para manter o espaço limpo e bonito, segundo ela, é "mais fiscalização, porque tem gente que só age correto quando pesa no bolso."

Se no Autran Nunes o trabalho foi feito a quatro ou no máximo oito mãos, na comunidade do Lagamar, localizada no bairro São João do Tauape, o barbeiro Jefferson Gentil, 30, perdeu as contas de quantas pessoas o ajudaram a limpar e requalificar a Rua do Canal, na "orla" da região. Por lá, pneus foram doados por borracharias do bairro, os três baldes de tinta utilizados para colorir troncos de árvores, meio-fio, muretas e calçadas foram comprados com a ajuda de cota arrecadada pelos moradores, e a mão de obra ficou por conta de "talentos locais".

"As crianças não tinham onde brincar, meus pais não podiam nem sentar na calçada, porque ficavam de frente pro lixo, pro mau-cheiro. Agora, queremos fazer desse espaço uma verdadeira área de lazer para a comunidade. É como se tivessem tirado um peso e está tudo mais leve e divertido pra nós", alegra-se Jefferson, morador do Lagamar há 22 anos.

Preconceito

Além de retirar o lixo, os insetos, tornar o local mais agradável e criar um espaço para convivência, o barbeiro aposta que a mudança no cenário deve servir como mensagem ao resto da cidade. "A gente é muito julgado, aqui. É sempre mal visto. Além da aparência, a principal mudança é que ações como essa incentivam as crianças a fazerem o bem, a cuidarem da comunidade e mostrarem que não é porque somos pobres que precisamos ser sujos e desorganizados."

Tanto Regineide como Jefferson aguardam, agora, doações de materiais básicos para expandirem a revitalização para outros pontos dos respectivos bairros. Para ela, tinta, pincéis e pneus (usados como obstáculos para impedir que veículos subam as calçadas) nunca são o bastante. Para ele, além do material de pintura e dos pneus, são necessárias lonas e linhas de madeira (para criar espaços de sombra ao longo da "orla" do Lagamar), paletes para confecção de banquinhos e brinquedos para as crianças da comunidade. Insumos simples, baratos - e capazes de transformar os hábitos e a autoestima de duas comunidades inteiras.

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