"Compra de vacinas pela rede privada deve acontecer como complemento ao estoque do SUS", diz biólogo

Membro do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, o biólogo Luiz Gustavo de Almeida, PhD em Microbiologia pela USP, acredita que, caso a vacinação na rede privada ocorra à parte da imunização na rede pública, é possível que surjam "mais problemas que soluções"

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@svm.com.br

A comunidade médica teve opiniões divididas diante da negociação entre a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) e a farmacêutica indiana Bharat Biotech, a fim de garantir doses da vacina Covaxin - contra a Covid-19 - na rede de saúde privada. A questão é complexa, como reforça o biólogo Luiz Gustavo de Almeida, PhD em Microbiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Porém, em um cenário ideal, a aquisição de doses pela rede particular deveria acontecer como forma complementar ao estoque da rede pública.

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Para Almeida, que também é coordenador dos projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência (IQC), caso a vacinação na rede privada ocorra à parte da imunização pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é possível que surjam "mais problemas que soluções".

É interessante que a busca da rede privada pela vacina aconteça para ampliar a imunização da população?

Essa busca pela vacina na rede privada aconteceu muito pela inanição do Governo Federal em ter uma agilidade maior, mostrar um pouco mais de interesse em buscar os imunizantes que já estão sendo aprovados mundo afora. Seria interessante que a rede privada se aliasse ao Governo Federal, ao invés de ser uma coisa à parte, porque provavelmente eles vão trazer poucas doses, e que não vão resolver muito para o que a gente chama de imunidade coletiva, ou de rebanho.

Vacinar poucas pessoas, e estou falando de centenas de milhares, isso não vai ajudar nada na diminuição da pandemia. Vão ficar grupos restritos, que vão conseguir pagar isso, mas a gente tem que lembrar que vacinação não é uma atividade individual, é uma atividade coletiva e social. O vírus só vai parar de ser transmitido se uma grande parcela da população realmente conseguir se imunizar. Então essa busca pela rede privada não vai ajudar muito nesse sentido de conseguir parar a transmissão da pandemia. Claro que a gente tem essa pressa de buscar imunizantes, mas a rede privada sozinha não vai dar conta de conseguir fazer esse papel que o estado deveria estar fazendo.

Se fosse uma vacina que já estivesse aprovada, a rede privada poderia entrar em acordo com o governo, e, por exemplo, disponibilizar uma dose na rede privada e duas para a pública, respeitando os grupos de prioridade. Poderia fazer dessa forma pra não vetar de vez. Tem meios de resolver esse imbróglio, a gente não quer cessar o direito de ninguém, não queremos deixar as pessoas sem vacinação, mas o Estado, no momento de pandemia, tem que intervir e pensar no bem coletivo, ao invés do individual.

O que teria motivado a escolha por essa vacina da Índia?

Provavelmente foi o que eles conseguiram comprar. Foi a que teve menor preço, ou que conseguiram negociar, mas ela está ainda terminando de recrutar voluntários para a fase 3 de testes. Já começou, já estão aplicando, mas ainda está em processo de recrutamento. Essa fase envolve algumas centenas de milhares de pessoas, de 30 até 100 mil pessoas envolvidas nesse estudo, e é nesse momento que essa vacina se encontra. A gente tem poucos dados de segurança e muito menos de eficácia.

A Índia aprovar por lá, pra uso emergencial, é um problema exclusivamente deles, decisão deles. Aqui no Brasil, estamos vendo que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está criando alguns entraves burocráticos até a mais do que outras agências, e se for seguir essa lógica, a gente não deve ter essa vacina aprovada sem os resultados da fase 3, que testa segurança e eficácia. Então provavelmente foi a única que eles conseguiram entrar em acordo, que valeria comprar, talvez, pouco. Provavelmente não tem uma demanda dessa vacina por outros países, porque ela não tem esses resultados ainda, então talvez seja a única que está disponível pra fazer esse tipo de negociação com a rede privada.

Mas é uma lástima a gente apostar numa vacina dessa, vai gerar mais desconfiança na população, e, se acontecer algum problema, quem vai ser responsabilizado? Cria mais problemas do que solução, e também não vai resolver a imunização em massa que a gente precisa.

Essa aquisição de vacinas pela rede privada poderia gerar uma "competição" com o abastecimento do SUS?

O Estado, pela Constituição, pode confiscar essas vacinas que foram compradas pela rede privada nesse caso específico que a gente está vivendo na pandemia, numa crise de saúde pública. Vai gerar essa disparidade ainda maior entre as pessoas que são tratadas pela SUS e as tratadas pela rede privada. Não vai resolver o nosso problema, e vai causar ainda essa polarização de quem pode pagar e quem não pode. Vai juntar com entraves políticos e talvez reforçar a ideia de que as empresas produzem essas vacinas "só pra vender". Mas vacinação não é negócio, é saúde pública e coletiva.

Nos Estados Unidos, isso está acontecendo com o pessoal que está na linha de frente da pandemia. Lá não tem SUS, e o que acontece é que o governo paga para a rede privada para que as pessoas não paguem pela vacina, mas claro que de vez em quando aparece alguém com mais dinheiro que consegue passar na frente. E isso gerou revolta nas pessoas que trabalham na linha de frente, porque eles deveriam ser o grupo prioritário. Então se vier vacina pra cá e não foi aplicada de acordo com esses grupos, vai gerar revolta entre quem está trabalhando e tem que ficar longe de suas famílias.

Quando essa compra se concretizar, no momento correto, quais deveriam ser os critérios para regulamentar a distribuição na rede privada?

A partir do momento em que a Anvisa regula um medicamento ou vacina, a rede privada pode comprar. Mas o que o Estado prevê é isso. Ele não vai interferir na rede privada a partir do momento que não tiver demanda na rede pública. Para não haver disparidade. Só pela rede privada, não é possível.

Um cenário otimista seria se o Estado já tivesse algumas doses, aí a iniciativa privada ajudaria a trazer mais doses, para agilizar esse processo. Porque é um desafio tremendo a gente vacinar quem precisa. Os Estados Unidos estão vacinando, em média, 150 a 200 mil pessoas por dia. Parece muito, mas nesse ritmo que eles estão, vão demorar dois anos e meio pra vacinar metade da população deles com uma única dose da melhor vacina que eles têm, que é a da Pfizer. Então, eles estão querendo agilizar esse processo.

Aqui no Brasil, é ao contrário. Se a gente tomar como base a campanha de vacinação da gripe, que ocorreu em março de 2020 até junho do mesmo ano, a gente conseguir vacinar em 100 dias 53 milhões de pessoas. Dá mais ou menos 530 mil pessoas por dia, é mais que o dobro do que os Estados Unidos estão vacinando. E mesmo assim, se a gente vacinar nesse ritmo, vamos levar um ano inteiro pra vacinar a população que está incluída nesse plano.

O desafio é enorme. O Brasil sabe fazer isso, mas precisa de uma liderança. Precisa ter uma vacina, definir isso e aplicar. Cada uma tem uma eficácia diferente, e isso vai interferir no número de pessoas que a gente precisa vacinar. Por isso que precisa dessa liderança.

É importante que as vacinas adquiridas pela rede privada sejam de um laboratório que não esteja em negociação com o SUS?

Pode ter dispositivo na lei que determine isso, mas vai cair naquele mesmo problema. Vão comprar e vender ao preço que quiserem aqui. Não vai ter vacina pra todo mundo e, mais uma vez, gera mais problemas. Temos que pensar é numa solução da melhor maneira possível para envolver esses dois agentes, o privado e o federal.

O melhor cenário que vemos é esse, da rede privada ajudar o Estado a comprar vacinas, desde que se comprometam a priorizar as quantidades destinadas à rede pública. Seria fantástico ter essa ajuda, mas é necessário que isso seja repassado à população que não tem condição de comprar.

Vacinar menos pessoas poderia gerar uma mutação no vírus?

Isso não deve ser verdade. Primeiro, porque o vírus não muda muito. Se a gente pensar que vacinar poucas pessoas, outras ficarão suscetíveis e o vírus vai sofrer mutação, isso não é esperado que aconteça. Temos que lembrar que a vacinação vai causar uma resposta imunológica muito grande a diversas partes do vírus, então esse problema, pelo menos, acho que a gente não vai ter.

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