Cidade desperta

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: O amanhecer em Fortaleza é fenômeno de movimentos, barulhos e histórias de um lugar que é coletivo
Foto: Foto: Gustavo Pelizzon

Madrugada. Cidade escura, mas clareando. Já tem café no fogo. Aqui ou acolá. Bocejo. Preparo da rotina que talvez eu, - cá do meu grupo de apreciadores da permanência no sono, pelo menos, até 8h, - dificilmente dê conta. Enquanto uns me acompanham, outros (muitos) desconhecem a experiência de só encerrar o repouso quando o dia já alvorou. São eles os que madrugam e levam junto a cidade acordada antes das 6h.

Poderia até falar na "silenciosa Fortaleza" mas, as vezes que precisei vivê-la nesse estágio do dia revogaram essa percepção. É certo que a Fortaleza madrugadeira não é lá aquela do meio-dia, de barulho, agitação, correria no Centro, na Aldeota, na Parangaba, no Montese, na Messejana, na Granja Portugal, no Itaperi... Mas a cidade do amanhecer, discreta por completo também não é.

Antes das 6h já se tem registro do arrastado do balde de goma de tapioca nas banquinhas populares dispostas em tantas e tantas esquinas, no Centro e muito longe dele; o rodar dos carros de merenda, servidas nos canteiros das avenidas e perto das paradas dos coletivos. O abrir e fechar de portas e portões. O descer e subir ruas, o adentrar carros. Dirigir ônibus lotados de gente coberta de sono, mas que, pela exigência do pragmatismo, já está ligada.

Penso em que horas essa Fortaleza dorme. Até canso. Mas sigo curiosa. Porque sei que é cedo demais quando essa mesma Fortaleza se põe de pé. Me intriga esse tempo próprio de quem prepara o bom dia da coletividade (aquilo que chamamos de cidade). Tempo diferente do meu e tão relevante ao meu, pois habitar um lugar é sempre compactuar com os efeitos do seu uso.

O dono da mercearia abre as grades e dispõe na mesa da calçada os baldes, vassouras, caixas de frutas e as carnes frescas; o feirante espalha roupas, acessórios, peças e comidas; o padeiro acorda no limiar da madrugada para produzir o pão quentinho; o porteiro chega quando decorreram apenas 5h do dia.

Essa Fortaleza que cedo madruga talvez nem direito adormeça. Ou durma quando eu sequer penso que estão fazendo isso já que o experimento da cidade é, tantas vezes, tão regrado pelas vivências pessoais, que insisto em formular (inconscientemente) - há uma hora que todo mundo se recolhe junto. Muito embora essa hora jamais exista.

Além desse levantar "utilitário", "obrigatório", seja por si mesmo ou por tantas outras engrenagens (de poder, necessidade, etc..) não se pode negar a persistência dos que por (boa) vontade optam por viver a Fortaleza do despertar. Bem cedinho já percorrem as areias da praia ou beiras de pista. Caminham, dão voltas nos quarteirões, se exercitam nas praças. Carregam nos olhos o nascer do dia. Madrugadeiros, ao seu tempo, significando a cidade. Para si e para os outros.

Por escolha ou, tantas e muitas vezes, por necessidade, essa gente ao acordar, desperta Fortaleza. Vivem cotidianamente os mistérios impregnados no amanhecer. Talvez, seja essa a mágica desse momento, sinalizar o (re)começo da trivial rotina. O início da sucessão dos dias ordinários na cidade envelhecida, aos poucos, de tantos sóis nascidos, pousados e sumidos.

Fortaleza antes das 6h, quem sabe, tem as propriedades preliminares necessárias à cidade que horas depois acomoda dilemas típicos de um território ativo e desordenado. Penso, quase sempre, que da constante troca entre o que amanhece e o que descansa nasce a bonita e dura dinâmica do que é viver o nosso lugar.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.