Cearenses reveem famílias após meses distantes pela pandemia

Saguão de desembarque do Aeroporto de Fortaleza reúne histórias diárias de gente que dribla as regras sanitárias para se reencontrar e findar as saudades; mais de 11 mil voos foram cancelados na Capital, de abril a junho

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Ana Avelar (segunda, dir. Para esq.) é cercada pela família ao desembarcar em Fortaleza, "para ficar", após 13 anos morando no Rio de Janeiro
Foto: Helene Santos

"Abaçá." A dicção sequer amadureceu a ponto de articular os erres ou as ideias, mas a boca, quase sempre, escancara o que vai no coração: no de Yara, 4, vai saudade. Após um semestre sem ver a avó, a resposta da pequena foi instantânea: era "abraçar" o que mais queria fazer. Vários cearenses ficaram meses não-planejados em outros estados, distantes das famílias e de amigos, por efeito da pandemia de Covid-19. Agora, retornam aos poucos - pedindo licença às regras sanitárias para preencher o saguão do Aeroporto Internacional de Fortaleza, dia a dia, com contatos de afeto.

O distanciamento físico, que inclui a ausência de abraços, beijos e quaisquer aproximações entre as pessoas, é uma das imposições mais cruéis ditadas pela pandemia. O isolamento nos fez chegar a uma conclusão desafiadora, de digestão muito difícil, mas extremamente necessária: enquanto não houver vacina que barre o novo coronavírus, afastar-se dos nossos tornou-se a maior prova de amor que podemos dar.

Há momentos, no entanto, em que as regras sucumbem à saudade. Ao sair pela porta do desembarque, nessa quinta-feira (16), Maria Lucinda Alves, 49, mal deu cinco passos, e logo foi interrompida pelo enlace curto dos braços de Yara. A dona de casa viajou no início do ano para visitar um irmão, no interior do Piauí, e teve o retorno impedido pelo novo coronavírus. "Eu ia passar muito menos de seis meses, mas quando cheguei lá, começou essa pandemia. Me isolei total. Dia 9 agora, ia voltar, e cancelaram meu voo sem dizer o porquê. E eu tava doida pra ver minha princesa, que eu tava com muita saudade!", sorri a avó.

Legenda: Yara, de 4 anos, nunca havia passado tanto tempo longe da "vovó". Foram seis meses até Maria Lucinda conseguir retornar de uma viagem atravessada pela pandemia
Foto: Helene Santos

Durante a viagem, Lucinda "não ia nem na casa da vizinha", rotina que alimentou ainda mais a falta de casa. "Esse tempo foi de muita saudade. A distância é uma coisa que faz a gente sofrer muito, ainda mais sem poder voltar. Agora, vou ficar em casa, só saio pra ir ao médico. Mas mora todo mundo junto e misturado, vamos ficar perto", comemora, endossada pela filha, Francineide Alves, 32.

"Foi bastante emoção ver ela de novo. A gente tava com muito medo da viagem não dar certo de novo. Mas graças a Deus que deu tudo certo, e estamos aqui novamente, pra matar a saudade juntas. Conseguimos abraçar, apesar do coronavírus, mas tudo bem. Hoje tá permitido, né? Seis meses longe da mãe é muito tempo, foi o maior período que a gente já passou", calcula a filha, com os olhos marejados.

De acordo com a Fraport, cerca de 11.500 voos entre chegadas e partidas de Fortaleza foram cancelados, entre abril e junho. A companhia ressalta que "não é possível afirmar que foram em razão da Covid-19, já que cancelamentos são comuns no setor", mas um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) já havia apontado que no dia 28 de março deste ano, por exemplo, 95% das operações foram canceladas devido à crise sanitária. Foi o pico de cancelamentos no terminal.

Adiamento

Foi justamente a falta de voos para Fortaleza que adiou os planos de Vitória Araújo, 18, de rever as melhores amigas e a parte da família que ficou no Ceará, quando ela se mudou para o Sul do Brasil. A vinda estava programada para abril, justamente quando a pandemia avançou veloz por todos os estados, principalmente o Ceará, atingindo os planos em cheio. "Por conta da pandemia, perdi meu trabalho lá em Santa Catarina, porque parou tudo. Aí fiquei sempre em casa, me cuidando, até que consegui vir", relata.

A chegada era aguardada com uma ansiedade visível e quase palpável no semblante inquieto de Bruna Rafaela, 18, incubida da missão de buscar a amiga no aeroporto. Ao reconhecer um entre os tantos rostos no abre-e-fecha da porta automática do desembarque, a corrida ao abraço foi rápida - mas o gesto em si poderia se demorar pelo mesmo tempo que Vitória ficou longe. "Fazia dois anos que a gente não se via, e sempre fomos muito amigas. Um dia, ela mandou mensagem 'daqui a uns dias, tô chegando'. Depois, 'não vai dar, não tem mais voo'. Foi muito difícil", relata.

Legenda: Bruna e Vitória passaram dois anos sem encontro presencial, que deveria ter acontecido em abril, mas foi adiado pelos efeitos da pandemia na escassez de voos
Foto: Helene Santos

Apesar da decepção, Bruna, mais do que ninguém, "entendeu o momento": por trabalhar meio período em uma unidade de saúde, a estudante contraiu o novo coronavírus ao final de abril, permanecendo em tratamento domiciliar por oito dias, "com muito cansaço e muita febre". Hoje, consta entre os milhares de cearenses recuperados. "Fiquei muito decepcionada quando a Vitória adiou a vinda, mas sei que foi melhor. Naquele momento, era mais seguro pra ela e pra família. Não sabemos o que teria acontecido se ela estivesse no Ceará naquele período", reconhece.

À casa torna

Estar no Ceará, por outro lado, era o que Ana Avelar, 56, mais queria, quando a Covid-19 escancarou as fronteiras e invadiu o Rio de Janeiro, o segundo Estado mais infectado do Brasil. A cidade maravilhosa havia se tornado casa desde 2007, quando a personal organizer se mudou e passou a morar sozinha. Treze anos depois, voltou. Foram a saudade e a pandemia que a trouxeram pelo braço.

"Tudo ficou muito mais difícil lá, resolvi voltar pra ficar junto de toda a família, ficar perto de novo. O isolamento lá foi bem difícil, pelo medo de ficar doente, de pegar esse vírus louco. Tive medo até de morrer sozinha. Aqui, tô acolhida, com a família. Mesmo se ficasse doente e precisasse ir ao hospital, sei que tem gente do meu sangue que me ama ao meu lado", confortou-se Ana, enquanto era envolvida pelo abraço incessante dos netos e da filha, que a receberam com flores brancas no desembarque em Fortaleza.

A família se encontrava com frequência, todos os anos, no Rio e em Fortaleza, mas já estava há sete meses sem visitas, devido às restrições da pandemia. Para a nutricionista Juliana Avelar, 39, filha de Ana, o fim da espera pelo retorno da mãe à casa e aos abraços encerra, também, dois sentimentos: preocupação e saudade. "Ela morava sozinha lá, e a gente ficava aqui muito preocupada. A sensação de tê-la aqui de novo é muito boa. É bom demais estar com a mãe perto, principalmente agora", declara a filha.

Análise

Layza Castelo Branco Mendes
Psicóloga e Dra. em Saúde Coletiva

"De longe te hei de amar, - da tranquila distância em que o amor é saudade e o desejo, constância", disse Cecília Meireles. E quantas pessoas estão nessa condição de ter amores fora do alcance dos braços nesse momento de isolamento social? Muitas! A vida contemporânea, permeada pela tecnologia, permite muitos deslocamentos com menos sofrimento. A globalização promove um intenso intercâmbio humano para inúmeras finalidades, como estudar, trabalhar, formar família, entre outros motivos. Esse entrelaço humano de extensão global tornou-se comum. Assim, vemos quem amamos e que está distante a qualquer instante, em segundos, por meio de ligações. Há alguns anos os olhos já alcançam quem amamos. Há mais de um centenário os ouvidos já passaram a alcançar.

Ainda não existe invenção que alcance os braços. Logo, o desejo de um abraço, de sentir quem amamos há mesmo de existir e é constante, lembra-nos a poeta. O humano é movido pelo desejo e quão boa é a sensação de um desejo saciado. Alguém há de questionar a legitimidade do desejo do abraço de uma pessoa que amamos? Tarefa árdua não abraçarmos quem amamos mesmo diante das ameaças da pandemia. Nesse momento, assim como em muitos outros de nossa vida, muitas vezes o medo será posto de lado, pois o desejo mostra-se maior. Essa relação dialógica entre medo e desejo atravessa toda a trajetória humana.


 

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